08/06/2011

ANTICONTO MITOLÓGICO – Lucinda Prado


Sempre senti pavor de fim de mundo e toda cena de tempestade em alto-mar me faz lembrar um quadro de Nossa Senhora da Guia, que existia pendurado entre outros tantos, no quarto de minha mãe. Na minha infância, eu adorava ficar olhando para cada um deles e me deleitava ouvindo as histórias de todos os santos... Quantos martírios, quantas histórias de sofrimento! Minha imaginação de criança dava piruetas olhando as cenas, pintadas com certos exageros, naquelas gravuras, certamente para quê os Santos fossem valorizados.

“Será que para ser Santo tem que sofrer assim”? – Eu me perguntava, rebelde.
“Se não pode existir Santo sem lamento... Quero ser santo nunca” – afirmava.

O Quadro era assim, digamos o 3x4 de quadro, entende? Pois bem - era o mar revolto - parecido com o fim do mundo, e três pescadores em um barquinho. As ondas muito agitadas pela tempestade empurravam o barco cada vez mais para o alto- mar. Não se via uma luz sequer, pois estrelas e luas fugiram amedrontadas com o rosnar de Tupã - o deus trovão. As estrelas foram à procura de Thor, pois ele possuía um martelo chamado Mjolnir e este martelo tinha o poder de lançar os raios para algures. Mas Posêidon, o Deus do mar, estava em fúria porque seu pai, Cronos, havia traído sua mãe Réia e se enfeitiçado por Atenas. Anfitrite, a esposa de Posêidon, estava grávida de Tristão, o deus dos abismos oceânicos, e andava tendo uma gravidez de risco, não poderia sofrer qualquer tipo de aborrecimento. A Lua que havia marcado um encontro com o deus sol para o dia seguinte, jurava que iria se queixar para seu fogoso namorado sobre as atitudes inconsequentes de Posêidon.

Enquanto os deuses se entendiam, os três pescadores, que por acaso se chamavam Dorival, Caymmi e Maracangalha, eram simples pescadores lá para os lados da Bahia, cada vez mais viam suas vidas em perigo... Rezavam e apelavam para todos aqueles santos vizinhos de parede do quarto - São Sebastião com suas lanças cravadas por todo o corpo, São Benedito protegendo os negros contra brancos, São Pedro pendurado de cabeça para baixo em um poste, os anjinhos, Nossas Senhoras de todos os nomes, Maria, Abadia, Do Carmo, Nazaré, Aparecida... Enfim todas elas em seus quadros 3x4 observavam os acontecimentos. Foi quando um Querubim arretado, saiu de seu quadro 3x4 entrou sorrateiro no quadro dos pescadores e soprou ao ouvido de Caymmi que a Santa que poderia- lhes salvar era Ninfa, deusa da natureza, e que se sabia ter tido um caso com Hércules, o mais poderoso dos deuses, quando ela era pouco mais que adolescente e que Hércules ainda apaixonado por ela, fazia todas as suas vontades. Mas o Cúpido ouvindo aquilo correu em socorro aos pescadores e avisou que ela só atenderia pelo nome Nossa Senhora da Guia. Foi quando uma onda enorme levantou o barquinho em sua crista e, assim na crista da onda, Dorival e Caymmi deu um grito de desespero:
“Nossa Senhora da Guia!”
Nesse momento o céu se rasgou em dois e do meio surge Ela, linda, serena e majestosa, ordena para que os deuses parem de brigar e dá-lhes uma bronca, recoloca cada um no seu quadro. O mar se acalma. A lua, com suas hormonas em ebulição, corre para se despedir do sol, lança um olhar comprido para seu amado que vai caminhando e brigando com as nuvens por elas tentarem impedir que ele brilhe e as acusam de ter um pacto com o deus da noite que fica sempre de conversa com sua amada lua.
As estrelas voltaram sorrindo desconfiadas, com olhares faiscantes de quem andou fazendo amor nas alturas.
Dorival, Caymmi e Maracangalha acordam em suas camas ouvindo o deus da música cantar assim:

*O pescador tem dois amor
Um bem na terra, um bem no mar
O bem de terra é aquela que fica
Na beira da praia quando a gente sai...
O bem de terra é aquela que chora
Mas faz que não chora quando a gente sai
O bem do mar é o mar, é o mar
Que carrega com a gente.
Pra gente pescar

* O Bem do Mar – Dorival Caymmi


Foto:Lucinda Prado - O quadro que inspirou o conto.