Mário Quintana







Mario por ele mesmo     


Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! Eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Ah! mas o que querem são detalhes, cruezas, fofocas... Aí vai! Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades só há duas: ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois foi-nos prometida a Eternidade.

Nasci no rigor do inverno, temperatura: 1 grau  e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não estava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston Churchill nascera prematuro - o mesmo tendo acontecido a sir Isaac Newton! Excusez du peu... Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que acho que nunca escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada disso! sou é caladão, introspectivo. Não sei porque sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros?

Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de farmácia durante cinco anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Érico Veríssimo - que bem sabem (ou souberam) o que é a luta amorosa com as palavras.

 (Texto escrito pelo poeta para a revista IstoÉ de 14/11/1984)

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Bilhete

Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...

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O ÚLTIMO POEMA 


Enquanto me davam a extrema-unção,
Eu estava distraído…
Ah, essa mania incorrigível de estar
Pensando sempre n’outra coisa!
Aliás, tudo é sempre outra coisa
- segredo da poesia –
E, enquanto a voz do padre zumbia como um besouro,
Eu pensava era nos meus primeiros sapatos
Que continuavam andando, que continuavam andando,
Até hoje
Pelos caminhos deste mundo.

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Hoje é Outro Dia
Quando abro cada manhã a janela do meu quarto
É como se abrisse o mesmo livro
Numa página nova…


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quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais uns necrológios…

Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida – a verdadeira -
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.

Inteira, sim, porque essa vida eterna
somente por si mesma é dividida:
não cabe, a cada qual, uma porção.

E os anjos entreolham-se espantados
quando alguém – ao voltar a si da vida -
acaso lhes indaga que horas são…


(poema do livro A Cor do Invisível. 2a. edição. São Paulo: Globo, 2005. p.96.)

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Eu sou um homem fechado.

O mundo me tornou egoísta e mau.
E a minha poesia é um vício triste,
Desesperado e solitário
Que eu faço tudo por abafar.

Mas tu apareceste com a tua boca fresca de madrugada,

Com o teu passo leve,
Com esses teus cabelos…

E o homem taciturno ficou imóvel, sem compreender nada, numa alegria atônita…

A súbita, a dolorosa alegria de um espantalho inútil
Aonde viessem pousar os passarinhos.


(Antologia Poética. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2007. p. 64)

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Conta o poeta: 
        
      


“Incomoda quando ninguém se preocupa comigo” 
Entrevista a Ney Gastal 
Entrevistar o poeta é como um duelo daqueles de filme antigo, em branco e preto, 
onde o bandido acaba inapelavelmente encurralado. Entrevistar o poeta é como um duelo, 
onde ele é o mocinho e nós, sem chance, o bandido. Raros são seus momentos de calma. Na 
semana de seu aniversário sempre há alguém querendo arrancar dele uma ou outra palavra. 
Por vezes apenas recusa; outras, lança um olhar desolado em torno, dá de ombros e sujeitase; outras, ainda, levanta-se e traz o potencial entrevistador até o armário atrás de minha 
mesa, onde está colocada uma cópia da “Declaração Universal dos Direitos do Homem”, e 
aponta o Artigo XII. Apenas isto, e poucos são os que continuam a insistir.  
   
Diz o artigo: “Ninguém será sujeito a interferência na sua vida privada, na sua 
família, no seu lar ou na sua correspondência nem a ataques a sua honra ou 
reputação. Todo homem tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou 
ataques”. Sinto, poeta, mas era preciso que o ‘Caderno” tivesse uma entrevista. E, 
afinal, alguém que é nada mais nada menos que a identidade secreta do Anjo 
Malaquias deve ter um pouco de paciência, não ? 
- O Anjo Malaquias é uma figura mitológica que criei como símbolo da frustração. 
Portanto, não se trata do seu autor. 
A esta altura da vida, continua teimando que te deixem em paz, que deixem de 
lado tua pessoa em função de tua obra. Mas por de trás desta modéstia deve haver 
uma grande vaidade por tudo que já foi feito. Não é ? 
- Não se trata de modéstia. É que eu sou muito orgulhoso para ter vaidades – tão 
próprias dos satisfeitos. Um poeta, mesmo nunca é um auto-satisfeito.  
Dizem que “os verdadeiros poetas não lêem outros poetas; os verdadeiros 
poetas lêem os pequenos anúncios dos jornais”. Tu, além disto, vives muito tempo 
dentro da redação do jornal. Ajuda a poetar ? 
- Tudo ajuda poetar, tudo atrapalha poetar. Mas, nos momentos de criação, onde 
quer que se esteja, as injunções de ambiente desaparecem na alegria da criação. Poesia é 
alegria, porque, por mais infeliz que esteja acaso o poeta, se ele consegue expressar isso 
com toda a felicidade – cadê tristeza ? 
Escreveram que terias dito que “Porto Alegre era uma pequena cidade grande; 
hoje é uma grande cidade pequena”. Foi isso ? Pelo que ela era é que nunca saíste 
daqui ? 
- O que eu disse, ou pretendia dizer, era que Porto Alegre era uma grande cidade 
pequena e hoje é uma pequena cidade grande. Será que bolei as trocas sem querer? Ou serão permutáveis os termos da proposição? Mas até as cidades do interior se estão 
padronizando: lanchonetes, etc. onde estão aqueles antigos cafés e bares espaçados como 
um salão de dança? 
Como vive o poeta dentro da estrutura desumanizada que é este nosso planeta? 
- Há uma infinidade de gente que julga desumanizado o meio em que vive. Não 
esquecer que todos os grandes movimentos começaram com pequenas minorias.  
E a Academia Brasileira de Letras, aceitarias participar dela ? 
- A Academia não convida. A gente é que tem de candidatar-se, solicitar votos 
pessoalmente, arranjar pistolões. Há gente que não dá para isso. Eu também não. 
O poeta simples é assunto para críticas complexas. Como vês a crítica e como 
encaras os críticos ? 
- Gosto da crítica interpretativa. Só não gosto da que condena um poeta pelo que 
ele não é. 
A tua poesia tem sido efetivamente compreendida pela crítica ? 
- Augusto Meyer, Carlos Dante de Morais, Fausto Cunha, Guilhermino César e 
alguns outros não oficialmente críticos antes de tudo “sentiram” a minha poesia e por isso 
mesmo a compreenderam. 
Quais os poetas que influíram na tua formação ? Há entre eles algum gaúcho? 
- Primeiro o “Tico-Tico”, depois Antônio Nobre, que foi meu companheiro de 
infância. Ah, e Camões, o velho bruxo! 
Tuas leituras de moço abrangeram a poesia inglesa ou toda tua formação foi 
através de francesa ? 
- Apenas através da língua francesa: vim da “Belle Époque”... 
 A pergunta clássica: como conceituas tu mesmo a tua poesia ? 
- Uma poesia profundamente emotiva. Daí, a ter ela atravessado três gerações. 
Voltando um pouco atrás: conta um pouco de tua vivência aqui na redução do 
“Correio”.  
- A minha vivência no “Correio” é ótima para a minha saúde espiritual, devido ao 
bem com que me tratam.  Pergunta de um aprendiz de diretor teatral: és um poeta solteiro ou um poeta 
sem mulher? 
- Agora, aos setenta, sou um solteiro viúvo. 
Do cinema de todas as semanas, o que mais te marcou? Há muito e há pouco 
tempo. 
- Há muito tempo “O Cidadão Kane”. Recentemente, “Um Estranho no Ninho” e 
“Cabaret”. 
Do cinema para a televisão. É que seguido estás olhando para o aparelho aqui 
da redação. Gostas ou é porque ele está tão perto de tua mesa? 
- Aquelas figuram que se movem na TV causam o efeito sedativo de quando a gente 
olha a dança das chamas na lareira. Sedativo, desde que não se preste atenção ao que 
dizem.  
Recebes melhor estudantes que vêm te entrevistar do que jornalistas. Por que a 
discriminação? 
- Os estudantes e as estudantes me fazem voltar à idade deles. Tenho o dom de 
sempre me achar com a mesma idade das criaturas com quem estou falando. Se há alguma 
discriminação, deve ser esse o inconsciente motivo.  
O “Caderno H” é composto de frases sobre vários assuntos. Que tal uma frase 
sobre o “Caderno H”? 
- Uma coisa inominável ? 
Falam de tua opinião, muita gente diz preocupar-se com ela. Mas não me 
parece que o poeta seja um ser só. Talvez os outros projetem nele suas próprias 
solidões. Não é? 
- O único problema da solidão é saber como preservá-la. Não poder estar só é o 
que acontece a um indivíduo (?) do rebanho. Tens razão ao dizer que um poeta não te 
parece um ser só. Tive amigos, sim. Morreram. É difícil estabelecer novas amizades 
porque uma amizade se baseia em velhas recordações comuns.  
No futuro os estudiosos da literatura brasileira vão esbarrar num muro de 
silêncio, ao estudarem Mário Quintana. Por que não falas sobre ti, sobre teu passado. 
Por que este recato tão grande com tuas recordações ? 
- A minha biografia está implícita nos meus poemas. Toda confissão não 
transfigurada pela arte é uma falta de linha, uma presunção. O que é que os outros tem a 
ver com isso ? Três poetas da nova geração e do teu agrado? 
- Daqui dos pagos ? Ayala, Duclós, Nejar, Trevisan, em ordem alfabética. 
Pretendes repetir Goethe e ser um velho prolífero ou achas que há um 
momento para silenciar? 
- Às vezes tenho momentos de “Lama, lama, sabáctani” e penso que a lagoa secou 
e só ficou o jacaré. Mas de repente me dá uma coisa, um treco, e sai um poema, uma 
observação. Isto me alegra por causa de meus leitores, dos meus fregueses de Caderno.  
Projetos? 
- Viver. 
Ressentimentos? 
- São passageiros. 
Por que algumas respostas tão curtas? 
- O laconismo é a essência do estilo. 
Além de dar e suportar entrevistas, o que mais te incomoda? 
- É quando ninguém se preocupa comigo.
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Sempre que chove    
Sempre que chove
Tudo faz tanto tempo...
E qualquer poema que acaso eu escreva
Vem sempre datado de 1779!

(Preparativos de Viagem)

O Mapa     
Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...

(É nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...

Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)

Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso...

(Apontamentos de História Sobrenatural)

Os poemas     
Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...

(Esconderijos do Tempo)

Gestos     [
A mão que parte o pão
a mão que semeia
a mão que o recebe
- como seria belo tudo isso se não fosse os intermediários!

Obsessão do mar oceano    
Vou andando feliz pelas ruas sem nome...
Que vento bom sopra do Mar Oceano!
Meu amor eu nem sei como se chama,
Nem sei se é muito longe o Mar Oceano...
Mas há vasos cobertos de conchinhas
Sobre as mesas... e moças na janelas
Com brincos e pulseiras de coral...
Búzios calçando portas... caravelas
Sonhando imóveis sobre velhos pianos...
Nisto,
Na vitrina do bric o teu sorriso, Antínous,
E eu me lembrei do pobre imperador Adriano,
De su'alma perdida e vaga na neblina...
Mas como sopra o vento sobre o Mar Oceano!
Se eu morresse amanhã, só deixaria, só,
Uma caixa de música
Uma bússola
Um mapa figurado
Uns poemas cheios de beleza única
De estarem inconclusos...
Mas como sopra o vento nestas ruas de outono!
E eu nem sei, eu nem sei como te chamas...
Mas nos encontramos sobre o Mar Oceano,
Quando eu também já não tiver mais nome.

(O Aprendiz de Feiticeiro)

Das utopias     
Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!

(Espelho Mágico)

Hai-Kais     
Entre o olhar respeitoso da tia
E o olhar confiante do cão
O menino inventava a poesia...
Em meio da ossaria
Uma caveira piscava-me...
Havia um vaga-lume dentro dela

Dos milagres     
O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloqüência ao mudo...
Nem mudar água pura em vinho tinto...
Milagre é acreditarem nisso tudo!

(Espelho Mágico)

Do amoroso esquecimento    
Eu, agora - que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?

(Espelho Mágico)

A oferenda     
Eu queria trazer-te uns versos muito lindos...
Trago-te estas mãos vazias
Que vão tomando a forma do teu seio.

Canção de barco e de olvido 
(Para Augusto Meyer)

Não quero a negra desnuda.
Não quero o baú do morto.
Eu quero o mapa das nuvens
E um barco bem vagaroso.

Ai esquinas esquecidas...
Ai lampiões de fins de linha...
Quem me abana das antigas
Janelas de guilhotina?

Que eu vou passando e passando,
Como em busca de outros ares...
Sempre de barco passando,
Cantando os meus quintanares...

No mesmo instante olvidando
Tudo o de que te lembrares.

Dos mundos     
Deus criou este mundo. O homem, todavia,
Entrou a desconfiar, cogitabundo...
Decerto não gostou lá muito do que via...
E foi logo inventando o outro mundo.

(Espelho Mágico)

Bilo-Bilo    
O idiota estilo bilo-bilo com que os adultos se dirigem às crianças, isso deve chateá-las enormemente, como a um poeta quando abordado com assuntos "poéticos".

Evolução     
O que me impressiona, à vista de um macaco, não é que ele tenha sido nosso passado: é este pressentimento de que ele venha a ser nosso futuro.

(Caderno H)

Da observação     
Não te irrites, por mais que te fizerem...
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio...

(Espelho Mágico)

Eu escrevi um poema triste     [ Menu ]
Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!

(A Cor do Invisível)

O auto-retrato     
No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...

às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...

e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,

no final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!

(Apontamentos de História Sobrenatural)

A canção da vida     
A vida é louca
a vida é uma sarabanda
é um corrupio...
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flor
e está cantando
em torno a ti:
Como eu sou bela
amor!
Entra em mim, como em uma tela
de Renoir
enquanto é primavera,
enquanto o mundo
não poluir
o azul do ar!
Não vás ficar
não vás ficar
aí...
como um salso chorando
na beira do rio...
(Como a vida é bela! como a vida é louca!)

(Esconderijos do Tempo)

Os degraus    
Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...

(Baú de Espantos)

Ah! Os relógios     [ Menu ]
Amigos, não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais uns necrológios...

Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida - a verdadeira -
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.

Inteira, sim, porque essa vida eterna
somente por si mesma é dividida:
não cabe, a cada qual, uma porção.

E os Anjos entreolham-se espantados
quando alguém - ao voltar a si da vida -
acaso lhes indaga que horas são...

(A Cor do Invisível)

A grande surpresa     
Mas que susto não irão levar essas velhas carolas se Deus existe mesmo...

(Caderno H)

Exame de cosciência     
Se eu amo o meu semelhante? Sim. Mas onde encontrar o meu semelhante?

(Caderno H)

Confessional     
Eu fui um menino por trás de uma vidraça. - um menino de aquário.
Vi o mundo passar como numa tela cinematográfica, mas que repetia sempre as mesmas cenas, as mesmas personagens. Tudo tão chato que o desenrolar da rua acaba me parecendo apenas em preto e branco, como nos filmes daquele tempo. (...)

Da discrição    
Não te abras com teu amigo
Que ele um outro amigo tem.
E o amigo do teu amigo
Possui amigos também...

(Espelho Mágico)

Os arroios    
Os arroios são rios guris...
Vão pulando e cantando dentre as pedras.
Fazem borbulhas d'água no caminho: bonito!
Dão vau aos burricos,
às belas morenas,
curiosos das pernas das belas morenas.
E às vezes vão tão devagar
que conhecem o cheiro e a cor das flores
que se debruçam sobre eles nos matos que atravessam
e onde parece quererem sestear.
Às vezes uma asa branca roça-os, súbita emoção
como a nossa se recebêssemos o miraculoso encontrão
de um Anjo...
Mas nem nós nem os rios sabemos nada disso.
Os rios tresandam óleo e alcatrão
e refletem, em vez de estrelas,
os letreiros das firmas que transportam utilidades.
Que pena me dão os arroios,
os inocentes arroios...

(Baú de Espantos)

O pior     
O pior dos problemas da gente é que ninguém tem nada com isso.

(Caderno H)

Libertação    
A morte é a libertação total:
A morte é quando a gente pode, afinal, estar deitado de sapato

Poeminha sentimental     
O meu amor, o meu amor, Maria
É como um fio telegráfico da estrada
Aonde vêm pousar as andorinhas...
De vez em quando chega uma
E canta
(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!)
Canta e vai-se embora
Outra, nem isso,
Mal chega, vai-se embora.
A última que passou
Limitou-se a fazer cocô
No meu pobre fio de vida!
No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:
As andorinhas é que mudam.

(Preparativos de Viagem)

Inscrição para um portão de cemitério    
Na mesma pedra se encontram,
Conforme o povo traduz,
Quando se nasce - uma estrela,
Quando se morre - uma cruz.
Mas quantos que aqui repousam
Hão de emendar-nos assim:
"Ponham-me a cruz no princípio...
E a luz da estrela no fim!"

(A Cor do Invisível)

O morto    
Eu estava dormindo e me acordaram
E me encontrei, assim, num mundo estranho e louco...
E quando eu começava a compreendê-lo
Um pouco,
Já eram horas de dormir de novo!

(Apontamentos de História Sobrenatural)

A vida     
Mas se a vida é tão curta como dizes porque que é que me estás lendo até agora?

*****


Carta de Mario Quintana


Meu caro poeta,
Por um lado foi bom que me tivesses pedido resposta urgente, senão eu jamais escreveria sobre o assunto desta, pois não possuo o dom discursivo e expositivo, vindo daí a dificuldade que sempre tive de escrever em prosa. A prosa não tem margens, nunca se sabe quando, como e onde parar. O poema, não; descreve uma parábola tracada pelo próprio impulso (ritmo); é que nem um grito. Todo poema é, para mim, uma interjeição ampliada; algo de instintivo, carregado de emoção. Com isso não quero dizer que o poema seja uma descarga emotiva, como o fariam os românticos. Deve, sim, trazer uma carga emocional, uma espécie de radioatividade, cuja duração só o tempo dirá. Por isso há versos de Camões que nos abalam tanto até hoje e há versos de hoje que os pósteros lerão com aquela cara com que lemos os de Filinto Elísio. Aliás, a posteridade é muito comprida: me dá sono. Escrever com o olho na posteridade é tão absurdo como escreveres para os súditos de Ramsés II, ou para o próprio Ramsés, se fores palaciano. Quanto a escrever para os contemporâneos, está muito bem, mas como é que vais saber quem são os teus contemporâneos? A única contemporaneidade que existe é a da contingência política e social, porque estamos mergulhados nela, mas isto compete melhor aos discursivos e expositivos , aos oradores e catedráticos. Que sobra então para a poesia? – perguntarás. E eu te respondo que sobras tu. Achas pouco? Não me refiro à tua pessoa, refiro-me ao teu eu, que transcende os teus limites pessoais, mergulhando no humano. O Profeta diz a todos: “eu vos trago a verdade”, enquanto o poeta, mais humildemente, se limita a dizer a cada um: “eu te trago a minha verdade.” E o poeta, quanto mais individual, mais universal, pois cada homem, qualquer que seja o condicionamento do meio e e da época, só vem a compreender e amar o que é essencialmente humano. Embora, eu que o diga, seja tão difícil ser assim autêntico. Às vezes assalta-me o terror de que todos os meus poemas sejam apócrifos!
Meu poeta, se estas linhas estão te aborrecendo é porque és poeta mesmo. Modéstia à parte, as disgressões sobre poesia sempre me causaram tédio e perplexidade. A culpa é tua, que me pediste conselho e me colocas na insustentável situação em que me vejo quando essas meninas dos colégios vêm (por inocência ou maldade dos professores) fazer pesquisas com perguntas assim: “O que é poesia? Por que se tornou poeta? Como escrevem os seus poemas?” A poesia é dessas coisas que a gente faz mas não diz.
A poesia é um fato consumado, não se discute; perguntas-me, no entanto, que orientação de trabalho seguir e que poetas deves ler. Eu tinha vontade de ser um grande poeta para te dizer como é que eles fazem. Só te posso dizer o que eu faço. Não sei como vem um poema. Às vezes uma palavra, uma frase ouvida, uma repentina imagem que me ocorre em qualquer parte, nas ocasiões mais insólitas. A esta imagem respondem outras. Por vezes uma rima até ajuda, com o inesperado da sua associação. (Em vez de associações de idéias, associações de imagem; creio ter sido esta a verdadeira conquista da poesia moderna.) Não lhes oponho trancas nem barreiras. Vai tudo para o papel. Guardo o papel, até que um dia o releio, já esquecido de tudo (a falta de memória é uma bênção nestes casos). Vem logo o trabalho de corte, pois noto logo o que estava demais ou o que era falso. Coisas que pareciam tão bonitinhas, mas que eram puro enfeite, coisas que eram puro desenvolvimento lógico (um poema não é um teorema) tudo isso eu deito abaixo, até ficar o essencial, isto é, o poema. Um poema tanto mais belo é quanto mais parecido for com o cavalo. Por não ter nada de mais nem nada de menos é que o cavalo é o mais belo ser da Criação.
Como vês, para isso é preciso uma luta constante. A minha está durando a vida inteira. O desfecho é sempre incerto. Sinto-me capaz de fazer um poema tão bom ou tão ruinzinho como aos 17 anos. Há na Bíblia uma passagem que não sei que sentido lhe darão os teólogos; é quando Jacob entra em luta com um anjo e lhe diz: “Eu não te largarei até que me abençoes”. Pois bem, haverá coisa melhor para indicar a luta do poeta com o poema? Não me perguntes, porém, a técninca dessa luta sagrada ou sacrílega. Cada poeta tem de descobrir, lutando, os seus próprios recursos. Só te digo que deves desconfiar dos truques da moda, que, quando muito, podem enganar o público e trazer-te uma efêmera popularidade.
Em todo caso, bem sabes que existe a métrica. Eu tive a vantagem de nascer numa época em que só se podia poetar dentro dos moldes clássicos. Era preciso ajustar as palavras naqueles moldes, obedecer àquelas rimas. Uma bela ginástica, meu poeta, que muitos de hoje acham ingenuamente desnecessária. Mas, da mesma forma que a gente primeiro aprendia nos cadernos de caligrafia para depois, com o tempo, adquirir uma letra própria, espelho grafológico da sua individualidade, eu na verdade te digo que só tem capacidade e moral para criar um ritmo livre quem for capaz de escrever um soneto clássico. Verás com o tempo que cada poema, aliás, impõe sua forma; uns, as canções, já vêm dançando, com as rimas de mãos dadas, outros, os dionisíacos (ou histriônicos, como queiras) até parecem aqualoucos. E um conselho, afinal: não cortes demais (um poema não é um esquema); eu próprio que tanto te recomendei a contenção, às vezes me distendo, me largo num poema que vai lá seguindo com os detritos, como um rio de enchente, e que me faz bem, porque o espreguiçamento é também uma ginástica. Desculpa se tudo isso é uma coisa óbvia; mas para muitos, que tu conheces, ainda não é; mostra-lhes, pois, estas linhas.
Agora, que poetas deves ler? Simplesmente os poetas de que gostares e eles assim te ajudarão a compreender-te, em vez de tu a eles. São os únicos que te convêm, pois cada um só gosta de quem se parece consigo. Já escrevi, e repito: o que chamam de influência poética é apenas confluência. Já li poetas de renome universal e, mais grave ainda, de renome nacional, e que no entanto me deixaram indiferente. De quem a culpa? De ninguém. É que não eram da minha família.
Enfim, meu poeta, trabalhe, trabalhe em seus versos e em você mesmo e apareça-me daqui a vinte anos. Combinado?
Mario Quintana