29/01/2013

Roteiro para ler poesia - Dividindo Saberes


Achei super interessante a forma como Rafael Rocha Daud (do site Roteiro para ler poesia )se coloca e as dicas que ele dá de como ler um poema. Já que temos tantos poetas por aqui,ai vai o texto.
Lucinda Prado

Roteiro para ler poesia

Como parte de nosso projeto de espalhar mais poesia pelo mundo. Apresentamos um roteiro para ler poesia, elaborado por Rafael Rocha Daud, o Daud. Recém-chegado e cheio de disposição em nosso grupo.

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As pessoas leem poesia por variados motivos. Seja pela apreciação estética, seja pelo compartilhamento de ideias ou mesmo por curiosidade pela engenhosidade alheia, existem tantas maneiras de ler um poema como existem leitores. Este roteiro pretende levantar alguns modos típicos e importantes para tentarmos empreender nossas leituras.

Imagem de Clastenes Cardoso e Christianne Hayde no Flickr em CC, alguns direitos reservados.
1. Ler
Parece óbvio, mas é nessa parte que esbarra 80% das pessoas. Para entender um poema, é preciso em primeiro lugar lê-lo. Pode-se — e na verdade deve-se — fazer isso de mais de uma forma. Ler rapidamente, em voz baixa, do começo ao fim; ler pausadamente, tentando captar o sentido de cada verso ou estrofe; ler em voz alta, com atenção para o ritmo e melodia; ler para alguém. Cada uma dessas formas de leitura visa apreender um aspecto diferente do poema. Nem todos os poemas fazem uso extenso de todos os recursos da poesia, mas é importante ler de várias formas diferentes para fazer aparecer os recursos que o poeta dispendeu. Nenhuma leitura é capaz de dar conta de todos esses recursos sozinha.
2. Decorar
Dizem que o verbo decorar deriva da expressão “de coração”, querendo dizer que aquilo que decoramos trazemos mais perto do peito. Alguns poemas são muito longos para isso, e os versos brancos (isto é, sem rima) ou livres (isto é, sem métrica) não são os mais fáceis de ser decorados. Além disso, algumas pessoas acham particularmente difícil memorizar qualquer coisa escrita (neste caso, podem tentar memorizar pela audição, declamando o poema várias vezes para si mesmas). De todo modo, todo mundo é capaz de decorar um ou dois versos, e cada verso isolado num poema é uma porta de acesso à sua totalidade, de maneira que saber um ou dois versos de cor certamente vale mais que não saber nenhum.
A principal vantagem de saber versos de cor (além de impressionar num salão) é que a compreensão da poesia não é unicamente racional, mas depende um pouco da experiência e mesmo da inspiração. Apreender um poema é em parte acessar a inspiração que o criou, e isso pode levar algum tempo, então é preciso “carregar” o poema consigo durante um certo tempo até que ele deixe você entrar. Nem todos os versos ou poemas valem essa companhia tão dedicada, mas você pode sempre escolher aqueles que carrega consigo.
3. Meditar
É preciso meditar no poema. Descobrir o significado das palavras desconhecidas. Reparar nas ambiguidades, no sentido das frases. Descobrir seu endereçamento (para quem ou para quê foram escritos) assim como sua origem (quem os escreveu, quando, onde). Pensar um pouco sobre cada um desses aspectos pode revelar chaves de compreensão que a mera contemplação não traz.
4. Escolher
Assim como um poeta escolhe as palavras, também o leitor precisa fazer certas escolhas. É num certo espelhamento com o autor que o poema se revela: autor e leitor não são entidades totalmente separadas, todo autor é um pouco leitor de si mesmo, e todo leitor é um pouco autor do que lê. É nesse sentido que se diz que cada um lê um poema diferente. Então é preciso escolher, num poema, aqueles versos que mais agradam, que mais dizem, aquilo que consideramos o principal no poema, que julgamos que seja o essencial. Isso pode ser qualquer coisa: um verso, uma ideia, um som, um ritmo, uma palavra, uma rima. Quando traduzimos um poema, é isso que fazemos: escolhemos preservar (uma vez que não é possível preservar tudo, embora seja falso que a poesia é intraduzível) uma ou mais características do poema, e fazemos essa escolha de acordo com aquilo que julgamos mais importante no poema.

imagem de Premasagar no Flickr em CC, alguns direitos reservados.
5. Discutir
Finalmente, não basta ler um poema e guardá-lo no bolso. Se ele não produzir nenhuma mudança em nós, então perde seu valor de poema. Essa mudança pode se dar em vários níveis: mudar uma maneira de perceber as coisas, mudar uma maneira de ler as coisas, e também mudar nossa maneira de nos comunicar, de argumentar, de pensar. Por isso, é possível discutir a poesia (não necessário, mas sempre possível). O que esse poema apresenta de novo? Que aspecto do mundo ele põe em destaque? Que posição ele adota (pensando num campo de embate ou debate)? Tais coisas podem ser explicitadas por meio da discussão, defendidas ou atacadas (como cada um lê um poema, nem todos estarão de acordo quanto à maneira de responder essas perguntas) e finalmente escolhidas (claro que cada um é livre para continuar pensando como quiser, mas esse pensamento se enriquece só de conhecer os outros pensamentos possíveis).
Posfácio
Poemas são formas sintéticas. Isso quer dizer que é possível transmitir muito através da forma compacta do poema. Eles são meios bastante eficazes, por isso, tanto para transmitir ideias, para formular argumentos, como para ensinar. As 5 etapas da leitura de um poema que expusemos (sem serem as únicas possíveis, claro, mas as elementares) permitem destrichar, ou analisar o poema, e como que aplicar engenharia reversa nele. O resultado dessa análise, ao ser transmitido para outra pessoa (ou construído com ela, como pretendemos aqui), permite acessar o sintético do poema, potencializando sua capacidade sintética de transmissão, fazendo com que sirva de reservatório de um campo muito mais amplo de debate.
Ex.: o poema Todesfuge, de Paul Celan, cujo refrão diz “Wir trinken und trinken”, a Ana Rusche analisou dizendo que a repetição do som tr tr remetia à presença massiva das metralhadoras e da produção industrial nos campos de concentração. A partir dessa análise, eu pude traduzir o título por Fuga à Morte, e o refrão por “E tragamos e tragamos”, preservando dois aspectos que não eram evidentes para mim (que conheço pouco o alemão e conhecia pouco a história do poema), o que teria se perdido sem essa análise (e que aliás se perdeu em muitas traduções famosas do poema).
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