Mil contos de todos os cantos

CONTOS 



na foto: meus avós paternos - Floriano e Lucinda



O tamanho não é o que faz mal a este gênero de histórias. É naturalmente a qualidade; mas há sempre uma qualidade nos contos que os torna superiores aos grandes romances, se uns e outros são medíocres: é serem curtos.
Machado de Assis

O conto é um texto narrativo centrado em um relato referente a um fato ou determinado acontecimento. Sendo que este pode ser real, como é o caso de uma notícia jornalística, um evento esportivo, dentre outros. Podendo também ser fictício, ou seja, algo resultante de uma invenção. No que se refere às origens, o mesmo remonta aos tempos antigos, representado pelas narrativas orais dos antigos povos nas noites de luar, passando pelos gregos e romanos, lendas orientais, parábolas bíblicas, novelas medievais italianas, pelas fábulas francesas de Esopo e La Fontaine, chegando até os livros, como hoje conhecemos.

Em meio a esta trajetória, revestiu-se de inúmeras classificações, resultando nas chamadas antologias, as quais reúnem os contos por nacionalidade: brasileiro, russo, francês e por categorias relacionadas ao gênero, denominando-se em contos maravilhosos, policiais, de amor, ficção científica, fantásticos, de terror, mistério, dentre outras classificações, tais como tradicional, moderno e contemporâneo.

Perfaz-se de todos os elementos que compõem a narrativa, ou seja, tempo, espaço, poucos personagens, foco narrativo de 1ª ou 3ª pessoa, corroborando em uma sequência de fatos que constituem o enredo, também chamado de trama.

E um dos fatores de total relevância, é que o enredo apresenta-se de forma condensada e sintética, centrado em um único conflito. Tal característica tende a criar o que chamamos de unidade de impressão, elemento que norteia toda a narrativa, criando um efeito no próprio leitor, manifestado pela admiração, espanto, medo, desconcerto, surpresa, entre outros. 


...............

GALINHA CEGA – João Alphonsus


Na manhã sadia, o homem de barbas poentas, entronado na carrocinha, aspirou forte. O ar passava lhe dobrando o bigode ríspido como a um milharal. Berrou arrastadamente o pregão molengo:
- Frangos BONS E BARATOS!
Com as cabeças de mártires obscuros enfiadas na tela de arame os bichos piavam num protesto. Não eram bons. Nem mesmo baratos. Queriam apenas que os soltassem. Que lhes devolvessem o direito de continuar ciscando no terreiro amplo e longe.
- Psiu!
Foi o cavalo que ouviu e estacou, enquanto o seu dono terminava o pregão. Um bruto homem de barbas brancas na porta de um barracão chamava o vendedor cavando o ar com o braço enorme.
Quanto? Tanto. Mas puseram-se a discutir exaustivamente os preços.
Não queriam por nada chegar a um acordo. O vendedor era macio. O comprador brusco.
- Olhe esta franguinha branca. Então não vale?
- Está gordota… E que bonitos olhos ela tem. Pretotes… Vá lá!
O homem de barbas poentas entronou-se de novo e persistiu em gritar pela rua que despertava:
- Frangos BONS E BARATOS!
Carregando a franga, o comprador satisfeito penetrou no barracão.
- Olha, Inácia, o que eu comprei.
A mulher tinha um eterno descontentamento escondido nas rugas.
Permaneceu calada.
- Olha os olhos. Pretotes…
- É.
- Gostei dela e comprei. Garanto que vai ser uma boa galinha.
- É.
No terreiro, sentindo a liberdade que retornava, a franga agitou as penas e começou a catar afobada os bagos de milho que o novo dono lhe atirava divertidíssimo.
A rua era suburbana, calada, sem movimento. Mas no alto da colina dominando a cidade que se estendia lá embaixo cheia de árvores no dia e de luzes na noite. Perto havia moitas de pitangueiras a cuja sombra os galináceos podiam flanar à vontade e dormir a sesta.
A franga não notou grande diferença entre a sua vida atual e a que levava em seu torrão natal distante. Muito distante. Lembrava-se vagamente de ter sido embalaiada com companheiros mal-humorados. Carregaram os balaios a trouxe-mouxe para um galinheiro sobre rodas, comprido e distinto, mas sem poleiros. Houve um grito lá fora, lancinante, formidável. As paisagens começaram a correr nas grades, enquanto o galinheiro todo se agitava, barulhando e rangendo por baixo. Rolos de fumo rolavam com um cheiro paulificante. De longe em longe as paisagens paravam. Mas novo grito e elas de novo a correr. Na noitinha sumiram-se as paisagens e apareceram fagulhas.Um fogo de artifício como nunca vira. Aliás ela nunca tinha visto um fogo de artifício. Que lindo, que lindo. Adormecera numa enjoada madorna…
Viera depois outro dia de paisagens que tinham pressa. Dia de sede e fome.
Agora a vida voltava a ser boa. Não tinha saudades do torrão natal. Possuía o bastante para sua felicidade: liberdade e milho. Só o galo é que às vezes vinha perturbá-la incompreensivelmente. Já lá vinha ele, bem elegante, com plumas, forte, resoluto. Já lá vinha. Não havia dúvida que era bem bonito. Já lá vinha… Sujeito cacete.
O galo – có, có, có – có, có, có – rodeou-a, abriu a asa, arranhou as penas com as unhas. Embarafustaram pelo mato numa carreira doida. E ela teve a revelação do lado contrário da vida. Sem grande contrariedade a não ser o propósito inconscientemente feminino de se esquivar, querendo e não querendo.
- A melhor galinha, Inácia! Boa à beça!
- Não sei por quê.
- Você sempre besta! Pois eu sei…
- Besta! besta, hein?
- Desculpe, Inácia. Foi sem querer. Também você sabe que eu gosto da galinha e fica me amolando.
- Besta é você!
- Eu sei que eu sou.
Ao ruído do milho se espalhando na terra, a galinha lá foi correndo defender o seu quinhão, e os olhos do dono descansaram em suas penas brancas, no seu porte firme, com ternura. E os olhos notaram logo a anormalidade. A branquinha – era o nome que o dono lhe botara – bicava
o chão doidamente e raro alcançava um grão. Bicava quase sempre a uma pequena distância de cada bago de milho e repetia o golpe, repetia com desespero, até catar um grão que nem sempre era aquele que visava.
O dono correu atrás de sua branquinha, agarrou-a, lhe examinou os olhos. Estavam direitinhos, graças a Deus, e muito pretos. Soltou-a no terreiro e lhe atirou mais milho. A galinha continuou a bicar o chão desorientada. Atirou ainda mais, com paciência, até que ela se fartasse. Mas
não conseguiu com o gasto de milho, de que as outras se aproveitaram, atinar com a origem daquela desorientação. Que é que seria aquilo, meu Deus do céu. Se fosse efeito de uma pedrada na cabeça e se soubesse quem havia mandado a pedra, algum moleque da vizinhança, ai… Nem por sombra imaginou que era a cegueira irremediável que principiava.
Também a galinha, coitada, não compreendia nada, absolutamente nada daquilo. Por que não vinham mais os dias luminosos em que procurava a sombra das pitangueiras? Sentia ainda o calor do sol, mas tudo quase sempre tão escuro. Quase que já não sabia onde é que estava a luz, onde é que estava a sombra.
Foi assim que, certa madrugada, quando abriu os olhos, abriu sem ver coisa alguma. Tudo em redor dela estava preto. Era só ela, pobre, indefesa galinha, dentro do infinitamente preto; perdida dentro do inexistente, pois que o mundo desaparecera e só ela existia inexplicavelmente dentro da sombra do nada. Estava ainda no poleiro. Ali se anularia, quietinha, se finando quase sem sofrimento, porquanto a admirável clarividência dos seus instintos não podia conceber que ela estivesse viva e obrigada a viver, quando o mundo em redor se havia sumido.
Porém, suprema crueldade, os outros sentidos estavam atentos e fortes no seu corpo. Ouviu que as outras galinhas desciam do poleiro cantando alegremente. Ela, coitada, armou um pulo no vácuo e foi cair no chão invisível, tocando-o com o bico, pés, peito, o corpo todo. As outras cantavam.
Espichava inutilmente o pescoço para passar além da sombra. Queria ver, queria ver! Para depois cantar.
As mãos carinhosas do dono suspenderam-na do chão.
- A coitada está cega, Inácia! Cega!
- É.
Nos olhos raiados de sangue do carroceiro (ele era carroceiro) boiavam duas lágrimas enormes.
Religiosamente, pela manhãzinha, ele dava milho na mão para a galinha cega. As bicadas tontas, de violentas, faziam doer a palma da mão calosa.
E ele sorria. Depois a conduzia ao poço, onde ela bebia com os pés dentro da água. A sensação direta da água nos pés lhe anunciava que era hora de matar a sede; curvava o pescoço rapidamente, mas nem sempre apenas o bico atingia a água: muita vez, no furor da sede longamente guardada, toda a cabeça mergulhava no líquido, e ela a sacudia, assim molhada, no ar. Gotas inúmeras se espargiam nas mãos e no rosto do carroceiro agachado junto do poço. Aquela água era como uma bênção para ele. Como a água benta, com que um Deus misericordioso e acessível aspergisse todas as dores animais. Bênção, água benta, ou coisa parecida: uma impressão de doloroso triunfo, de sofredora vitória sobre a desgraça inexplicável, injustificável, na carícia dos pingos de água, que não enxugava e lhe secavam lentamente na pele.
Impressão, aliás, algo confusa, sem requintes psicológicos e sem literatura. Depois de satisfeita a sede, ele a colocava no pequeno cercado de tela separado do terreiro (as outras galinhas martirizavam muito a branquinha) que construíra especialmente para ela. De tardinha dava-lhe outra vez milho e água, e deixava a pobre cega num poleiro solitário, dentro do cercado.
Porque o bico e as unhas não mais catassem e ciscassem, puseram-se a crescer. A galinha ia adquirindo um aspecto irrisório de rapace, ironia do destino, o bico recurvo, as unhas aduncas. E tal crescimento já lhe atrapalhava os passos, lhe impedia de comer e beber. Ele notou mais essa miséria e, de vez em quando, com a tesoura, aparava o excesso de substância córnea no
serzinho desgraçado e querido.
Entretanto, a galinha já se sentia de novo quase feliz. Tinha delidas lembranças da claridade sumida. No terreiro plano ela podia ir e vir à vontade até topar a tela de arame, e abrigar-se do sol debaixo do seu poleiro solitário.
Ainda tinha liberdade – o pouco de liberdade necessário à sua cegueira. E milho. Não compreendia nem procurava compreender aquilo. Tinham soprado a lâmpada e acabou-se. Quem tinha soprado não era da conta dela. Mas o que lhe doía fundamente era já não poder ver o galo de plumas bonitas.
E não sentir mais o galo perturbá-la com o seu có-có-có malicioso. O ingrato.
Em determinadas tardes, na ternura crescente do parati, ele pegava a galinha, após dar-lhe comida e bebida, se sentava na porta do terreiro e começava a niná-la com a voz branda, comovida:
- Coitadinha da minha ceguinha!
- Tadinha da ceguinha…
Depois, já de noite, ia botá-la no poleiro solitário.
De repente os acontecimentos se precipitaram.
- Entra!
- Centra!
A meninada ria a maldade atávica no gozo do futebol originalíssimo.
A galinha se abandonava sem protesto na sua treva à mercê dos chutes. Ia e vinha. Os meninos não chutavam com tanta força como a uma bola, mas chutavam, e gozavam a brincadeira.
O carroceiro não quis saber por que é que a sua ceguinha estava no meio da rua. Avançou como um possesso com o chicote que assoviou para atingir umas nádegas tenras. Zebrou carnes nos estalos da longa tira de sola.
O grupo de guris se dispersou em prantos, risos, insultos pesados, revolta.
- Você chicoteou o filho do delegado. Vamos à delegacia.
Quando saiu do xadrez, na manhã seguinte, levava um nó na garganta.
Rubro de raiva impotente. Foi quase que correndo para casa.
- Onde está a galinha, Inácia?
- Vai ver.
Encontrou-a no terreirinho, estirada, morta! Por todos os lados havia penas arrancadas, mostrando que a pobre se debatera, lutara contra o inimigo, antes deste abrir-lhe o pescoço, onde existiam coágulos de sangue…
Era tão trágico o aspecto do marido que os olhos da mulher se esbugalharam de pavor.
- Não fui eu não! Com certeza um gambá!
- Você não viu?
- Não acordei! Não pude acordar!
Ele mandou a enorme mão fechada contra as rugas dela. A velha tombou nocaute, mas sem aguardar a contagem dos pontos escapuliu para a rua gritando: – Me acudam!
Quando de novo saiu do xadrez, na manhã seguinte, tinha açambarcado todas as iras do mundo. Arquitetava vinganças tremendas contra o gambá.
Todo gambá é pau-d’água. Deixaria uma gamela com cachaça no terreiro. Quando o bichinho se embriagasse, havia de matá-lo aos poucos. De-va-gari-nho.
GOSTOSAMENTE.
De noite preparou a esquisita armadilha e ficou esperando. Logo pelas 20 horas o sono chegou. Cansado da insônia no xadrez, ele não resistiu. Mas acordou justamente na hora precisa, necessária. A porta do galinheiro, ao luar leitoso, junto à mancha redonda da gamela, tinha outra mancha escura que se movia dificilmente.
Foi se aproximando sorrateiro, traiçoeiro, meio agachado, examinando em olhadas rápidas o terreno em volta, as possibilidades de fuga do animal, para destruí-las de pronto, se necessário. O gambá fixou-o com os olhos espertos e inocentes, e começou a rir:
- Kiss! kiss! kiss!
(Se o gambá fosse inglês com certeza estaria pedindo beijos. Mas não era. No mínimo estava comunicando que houvera querido alguma coisa. Comer galinhas por exemplo. Bêbado.)
O carroceiro examinou o bichinho curiosamente. O luar, que favorece os surtos de raposas e gambás nos galinheiros, era esplêndido. Mas apenas tocou-o de leve com o pé, já simpatizado:
- Vai embora, seu tratante!
O gambá foi indo tropegamente. Passou por baixo da tela e parou olhando para a lua. Se sentia imensamente feliz o bichinho e começou a cantarolar imbecilmente, como qualquer criatura humana:
- A lua como um balão balança!
A lua como um balão balança!
A lua como um ……
E adormeceu de súbito debaixo de uma pitangueira.






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O Ovo e a Galinha - Clarice Lispector





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A Máscara

Havia naquela noite um baile à fantasia no Elisée Montmartre. Era por ocasião da mi-careme, e, como a água através da comporta de uma represa, a multidão despejava-se no corredor iluminado que leva ao salão de baile. O irresistível apelo da orquestra, estrondeando como uma tempestade musical, atravessava as paredes e o teto, espalhava-se pelo bairro e ia despertar, nas ruas e a té no fundo das casas vizinhas, aquele invencível desejo de saltar, de aquecer-se e divertir-se que dormita no íntimo do animal humano.
E os freqüentadores da festa também vinham dos quatro cantos de Paris, pessoas de todas as classes sociais, amantes de diversões barulhentas, um tanto quanto licenciosas, tocadas de libertinagem. Eram empregados, cáftens, mulheres alegres, que conheciam toda espécie de lençóis, do mais grosseiro algodão à mais fina batista, mulheres ricas, velhas e cheias de diamantes, e mulheres pobres, de dezesseis anos, desejosas de divertir-se, de entregar-se a homens, de gastar dinheiro. Elegantes casacas negras à cata de carne moça, de primícias defloradas, porém saborosas, erravam por entre aquela multidão aquecida, procuravam, pareciam farejar, enquanto os mascarados eram impelidos, sobretudo, pelo desejo de divertir-se. Quartetos famosos de dançarinos já tinham reunido em torno das suas piruetas um largo círculo de assistentes. Aquela cerca ondulante, aquela massa buliçosa de mulheres e de homens, que rodeava os quatro dançarinos, torcia-se como uma serpente, ora se aproximando, ora se afastando, de acordo com os deslocamentos operados pelos artistas. As duas mulheres, cujas coxas pareciam ligadas ao corpo por molas de borracha, moviam as pernas com incrí  vel agilidade. Atiravam-nas para cima com tanta violência que pareciam voar em direção às nuvens, depois subitamente as afastavam como se tivessem sido rasgadas até a metade do ventre e, fazendo-as deslizar, uma para a frente, a outra para trás, tocavam o solo com o corpo com um movimento rápido, cômico e repulsivo.
Os dois cavalheiros pulavam, moviam agilmente os pés, agitavam-se, sacudindo os braços levantados como cotos de asas sem penas e, sob as máscaras, percebia-se a sua respiração ofegante.
Um destes últimos, que participava da mais reputada das quadrilhas como substituto de uma celebridade ausente, o belo Songe au Gosse, e que se esforçava para acompanhar a infatigável Arête-de-Vau, executava figuras curiosas, que despertavam a alegria e o sarcasmo do público.
Era magro, vestia-se como um janota e usava uma bonita máscara envernizada, uma máscara de bigodes louros, frisados, e toucada por uma peruca anelada.
Lembrava uma figura de cera do Museu Grévin, estranha e fantástica caricatura de página de figurino, e dançava com esforçada compenetração, porém desajeitadamente, com entusiasmo grotesco. Parecia enferrujado ao lado dos outros, ao tentar imitar-lhes as piruetas; parecia tolhido, pesado como um cão fraldeiro que brincasse com galgos. Encorajavam-no alguns aplausos zombeteiros. E, ébrio de entusiasmo, ele sacudia as pernas com tal frenesi que, de repente, levado por um impulso violento, foi dar de cabeça contra a muralha dos assistentes, que se entreabriu para deixá-lo passar  e depois tornou a fechar-se em torno daquele corpo inerte, estendido de borco, o dançarino inanimado.
Alguns homens o levantaram, carregararn-no. Alguém gritou: “Um médico!” Apresentou-se um cavalheiro ainda jovem, muito elegante, de casaca negra com grandes pérolas na camisa branca. “Sou professor da faculdade”, declarou, com entonação modesta. Deixaram-no passar e ele se dirigiu a uma saleta cheia de caixas de documentos, como o escritório de um procurador, onde o dançarino, ainda desacordado, fora estendido sobre cadeiras. Antes de tudo o médico procurou retirar a máscara, e percebeu que fora fixada de maneira  embaraçosa, com uma porção de pequenos fios de metal; estes a atavam habilmente às bordas da peruca, e encerravam a cabeça inteira numa sólida ligadura, cujo segredo seria preciso conhecer. O próprio pescoço estava envolto numa pele artificial que prolongava o queixo, e aquela pele de luva, pintada da cor da carne, prendia-se na gola da camisa.
Foi preciso cortar aquilo tudo com grandes tesouras; e depois de ter feito no surpreendente conjunto um talho que ia do ombro à têmpora, o médico entreabriu a carapaça e descobriu um rosto gasto e envelhecido, magro, pálido e enrrugado. Tamanha foi a surpresa dos que tinham trazido o jovem mascarado de cabelos negros, que ninguém se riu nem pronunciou uma única palavra.
Contemplavam o triste rosto que descansava sobre a cadeira, de olhos fechados, cabelos brancos, alguns longos, caindo da fronte sobre o rosto, e curtos os que lhe guarneciam as faces e o queixo; e, ao lado daquela lamentável cabeça, a pequena e bonita máscara envernizada, a máscara jovem, que continuava a sorrir.
O desconhecido voltou a si depois de ter permanecido longamente desacordado; parecia, porém, tão fraco, tão doente, que o médico receou alguma complicação perigosa.
- Onde mora o senhor? – indagou.
O velho dançarino pareceu revolver a memória, e depois se lembrou e deu o nome de uma rua que nenhum dos presentes conhecia. Foi preciso pedir-lhe algumas explicações sobre o bairro. Forneceu-as com enorme dificuldade, com uma lentidão e uma incerteza que bem traiam a confusão da sua mente.
O médico declarou:
- Eu mesmo irei levá-lo.
Acometera-o a curiosidade de saber quem seria aquele estranho bailarino, de verificar onde morava aquele saltador fenômeno.
E pouco depois um carro de praça levou ambos ao outro lado das colinas de Montmartre.
Desceram na frente de um prédio alto, de aspecto pobre, com urna escada viscosa e construído entre dois terrenos baldios, um desses prédios eternamente inacabados, crivados de janelas, nichos imundos que abrigam uma multidão de seres maltrapilhos e miseráveis.
Segurando-se fortemente ao corrimão, um rolo de madeira que girava e no qual a mão ficava grudada, amparou até o quarto andar o ancião aturdido, que começava a recuperar as forças.
Abriu-se a porta à qual bateram e apareceu uma mulher, também velha, asseada, com uma touca de noite muito branca emoldurando-lhe a cabeça de ossos fortes e traços acentuados, um desses rostos grandes, rudes e bons, que freqüentemente possuem as fiéis e ativas esposas de operários. Exclamou:
- Meu Deus! O que teve ele?
Explicado o incidente com vinte palavras, ela se tranqüilizou e tranqüilizou o próprio médico, contando que aquela mesma aventura já acontecera antes, muitas vezes.
- É preciso deitá-lo, doutor, mais nada; ele dormirá e amanhã acordará outro.
O médico observou:
- Mas ele mal pode falar!
- Oh! Não é nada, um pouco de bebida, mais nada. Ele não jantou para sentir-se leve, e depois bebeu dois copos de absinto para animar-se. O senhor vê, o absinto lhe ativa as pernas, mas lhe tira as idéias e as palavras. Não é adequado à sua idade dançar como faz. Não, não há mesmo esperança de que ele tome juízo algum dia!
Surpreso, o médico insistiu:
 Mas por que dança ele desse jeito, velho como está? Ela ergueu os ombros, vermelha sob a ação da cólera que  pouco a pouco a excitava:
- Ah, sim, por quê? Para falar a verdade, é para que o imaginem moço embaixo da máscara, para que as mulheres ainda o julguem um galanteador e lhe digam libertinagens ao ouvido, para esfregar-se na pele dessas mulheres, peles sujas de perfumes, de pós e cremes … Ah! É incrível! Imagine, doutor, a vida que tenho levado durante os quarenta anos que isto vai durando… Primeiro, porém, precisamos deitá-lo, para que ele não se sinta mal. Não se importa de judar-me? Quando fica neste estado, é muito difícil para mim lidar com ele sozinha.
O velho estava sentado na cama, com jeito de bêbedo, os longos cabelos brancos caídos no rosto.
Sua companheira observava-o com olhos enternecidos e furiosos. Continuou:
- Repare como tem uma bonita cabeça para a idade; não precisava disfarçar-se de malandro para que o supusessem moço. É uma lástima! Não é verdade que ele tem uma bela cabeça, doutor? Espere, vou mostrá-la ao senhor antes que ele se deite.
- Encaminhou-se para uma mesa sobre a qual estavam colocados a bacia de mãos, o jarro de água, o sabão, o pente e a escova. Apanhou a escova, voltou para junto da cama e, depois de lidar por uns momentos com a cabeleira embaraçada do bêbedo, deu-lhe à cabeça a aparência de um modelo de pintor, com grandes madeixas caídas no pescoço. Recuou a fim de contemplá-lo e observou:
- Não é verdade que está bem para a sua idade?
- Muito bem – concordou o médico, que começava a divertir-se bastante.
- E se o senhor o tivesse conhecido quando tinha vinte e cinco anos! – exclamou ela. – Mas é preciso pô-lo na cama; sem isso, os seus absintos lhe ficariam dando voltas na barriga. Olhe, doutor, quer puxar a manga? .. Mais em cima … Assim … Bem … Agora a calça … Espere, vou tirar-lhe os sapatos … Está bem. Agora, conserve-o de pé para que eu arrume a cama. .. Pronto… Vamos deitá-lo. .. Se pensa que ele se afastará daqui a pouco para ceder-me lugar, o senhor está enganado. Terei que arranjar um cantinho, seja onde for. Isso não o preocupa. Ah, que estróina!
Ao sentir que estava estendido debaixo das cobertas, o velho fechou os olhos, tornou a abri-los e novamente os fechou, enquanto uma enérgica determinação de dormir se lhe refletia no rosto satisfeito.
O médico indagou, depois de observá-lo com acrescido interesse:
- Então, ele gosta de fingir-se de moço nos bailes à fantasia?
- Em todos, doutor, e só volta pela manhã, num estado que ninguém pode imaginar. Veja, é a tristeza que o leva aos salões, e que o obriga a colocar um rosto de papelão sobre o próprio. Sim, a tristeza de não ser mais o que já foi, e também de não obter mais o mesmo sucesso que já obteve!
O velho dormia, agora, e começava a roncar. Ela contemplou-o com ar apiedado e prosseguiu:
- Ah! Saiba o senhor que este homem já fez muito sucesso! Muito mais do que seria de supor, mais do que senhores elegantes da sociedade, mais do que todos os tenores e todos os generais.
 Realmente? Que fazia ele?
- Oh! O senhor vai ficar surpreendido, no começo, pois não o conheceu nos seus belos tempos. Quando o encontrei, também num baile, porque ele sempre os freqüentou, fiquei presa, ao vê-lo, presa como um peixe no anzol. Ele era bonito, doutor, bonito a ponto de fazer vir lágrimas aos olhos quando o fitávamos, com seus cabelos negros como um corvo, crespos, e uns olhos negros do tamanho de janelas. Ah, sim, era um belo rapaz. Nessa noite ele me levou consigo, e não mais o deixei, nunca, nem por um só dia, apcsar de tudo! Oh! Fez-me comer fogo!
O médico indagou: – Casaram-se?
Ela respondeu, com simplicidade:
- Sim … Sem isso ele me teria largado, como largou as outras. Fui sua mulher e sua criada, tudo, tudo quanto quis … e fez-me chorar … lágrimas que não lhe deixei ver! Pois me descrevia as suas aventuras … a mim … a mim … doutor, sem compreender o mal que me fazia ouvi-lo falar …
- Afinal, que profissão tinha?
- É verdade … Esqueci-me de contar. Era o primeiro ajudante de Martel, mas um primeiro ajudante como não houve outro igual. .. Um artista de dez francos a hora, em média …
- Martel? Quem é esse Martel? …
 O cabeleireiro, doutor, o grande cabeleireiro da Ópera, de quem todas as atrizes eram freguesas. Sim, todas as atrizes, mesmo as mais emproadas, faziam questão de ser penteadas por Ambroise, e davam-lhe gratificações que o enriqueceram. Ah, doutor, todas as mulheres são iguais, sim, todas. Quando um homem lhes agrada, elas o tomam. É tão fácil. .. e causa tanta mágoa quando a gente sabe! Pois ele me contava tudo .. .” Não podia calar-se … Não, não podia. Essas coisas causam tanto prazer aos homens! Talvez mais ainda quando as contam do que quando as fazem …
“Quando o via regressar, à noite, um pouco pálido, com um jeito satisfeito, o olhar brilhante, dizia comigo mesma: “Mais uma. Tenho a certeza de que arranjou mais uma.” E sentia vontade de interrogá-lo, uma vontade que me dilacerava o coração, e também vontade de nada saber, de impedir que falasse quando a isso se dispusesse. E nos entreolhávamos.
“Sabia bem que ele não se calaria, que ia tocar no assunto. Sentia-o pelo seu jeito, pelo jeito risonho com que me dava a entender: “Tive uma boa, hoje, Madeleine”. Fingia nada ver, nada perceber; e punha a mesa; trazia a sopa; sentava-me à frente dele.
“Naqueles momentos, doutor, era como se esmagassem com uma pedra, no meu corpo, a minha amizade por ele. Doia, sim, e bastante. Mas ele não percebia, não sabia; tinha necessidade de contar aquilo a alguém, de gabar-se, de mostrar que era amado. .. E só a mim podia contar. .. O senhor compreende. .. Só a mim. ” Então … eu precisava escutá-lo e engolir aquilo como se fosse veneno.
“Ele começava a tomar a sopa e depois dizia: “- Mais uma, Madeleine.
“Eu pensava: “Pronto. Meu Deus, que homem! Por que fui encontrá-lo?
“E ele continuava: – Mais uma, e bem bonita! – Tratava-se de uma pequena do Vaudeville ou então de uma pequena das Varietés, ou também de alguma dessas senhoras do teatro, das mais importantes, das mais conhecidas. Dava-me seus nomes, descrevia-me seus móveis, e tudo, tudo, sim, tudo, senhor … Pormenores que me dilaceravam o coração. E ele insistia, e recomeçava a história, do começo ao fim, tão contente que eu fingia rir-me para que não se zangasse comigo.
“Talvez nem tudo fosse verdade! Gostava tanto de gabar-se que seria muito capaz de inventar coisas desse gênero! Mas também podia ser verdade! Nessas noites, ele se queixava de cansaço, queria deitar-se logo depois da ceia. Ceávamos às onze horas, pois nunca ele regressava mais cedo, por causa dos penteados dos saraus.
“Quando terminava de contar a sua aventura, fumava cigarros, passeava pelo quarto e era tão bonito, com seus bigodes e seus cabelos crespos, que eu ponderava: “É verdade, mesmo, o que me contou. Já que sou louca por esse homem, por que as outras também não se apaixonariam?” Ah! Muitas vezes tive vontade de chorar, de gritar, de fugir, de atirar-me pela janela, enquanto tirava a mesa e ele continuava a fumar. Bocejava, abrindo a boca para mostrar quão cansado estava, e dizia duas ou três vezes, antes de meter-se na cama: “Meu Deus, como vou dormir bem esta noite!”
“Não lhe guardo rancor, pois não sabia quanto me magoava. Não, não podia saber! Gostava de gabar-se das mulheres como um pavão que desdobra a cauda. Chegara ao ponto de achar que todas o olhavam e o desejavam.
“Foi duro para ele quando envelheceu.
“Oh, doutor, ao ver seu primeiro cabelo branco, senti uma emoção que me fez perder o fôlego, e depois uma alegria – uma alegria perversa, mas tão grande, tão grande!!! Disse comigo mesma: “É o fim … é o fim … ” Pareceu-me que iam tirar-me de uma prisão. Seria meu, só meu, quando as outras não o quisessem mais.
“Era de manhã, estávamos na cama. Ele ainda dormia, e me inclinava para despertá-lo, beijando-o, quando divisei nos seus cabelos, na têmpora, um fiozinho que brilhava como prata. Que surpresa! Não teria acreditado que aquilo fosse possível! Primeiro pensei em arrancá-lo, para que ele não o visse! Porém, examinando melhor, avistei outro, um pouco acima. Cabelos brancos! Ele ia ter cabelos brancos! Meu coração pulsava e eu transpirava; contudo, estava bem contente, no fundo!
“É feio pensar assim, mas tive prazer em cuidar da casa naquela manhã, antes de acordá-lo; e quando ele abriu os olhos espontaneamente, eu lhe disse:
“- Sabe o que descobri enquanto você dormia? “- Não.
“- Descobri que está com cabelos brancos.
“Ele teve um sobressalto de despeito, que o pôs sentado como se eu lhe tivesse feito cócegas, e observou, com uma expressão má:
“- Não é verdade!
“- Sim, na têmpora esquerda. São quatro. “Ele saltou da cama para correr ao espelho.
“Não encontrou os cabelos brancos. Então lhe mostrei o primeiro, aquele crespinho, mais embaixo. E comentei: 
“- Não é de admirar, com a vida que você leva. Daqui a dois anos estará acabado.
“Pois bem, doutor, eu falava a verdade: ninguém o reconheceria dois anos depois. Como é possível um homem mudar tão depressa! Ainda era bonito, mas ia perdendo a frescura, e as mulheres já não o procuravam mais. Ah, que vida dura levei naqueles tempos! Bem boas ele me fez sofrer! Nada lhe agradava, absolutamente nada! Abandonou sua profissão para fabricar chapéus, e perdeu dinheiro. Depois quis ser ator e falhou, e em seguida começou a freqüentar bailes públicos. Afinal, teve o bom senso de guardar um pouco de dinheiro, com o qual vivemos. Dá, mas não é grande coisa! E dizer-se que houve um momento em que podia ser considerado quase rico!
“O senhor viu o que ele faz agora. É uma espécie de delírio que o possui. Precisa sentir-se jovem, precisa dançar com mulheres que cheirem a perfume e a brillhantina. Coitado do meu querido velho!”
Emocionada, prestes a chorar, ela contemplava o velho marido, que roncava. Depois, aproximando-se com passos cautelosos, beijou-lhe os cabelos. O médico levantara-se e preparava-se para retirar-se, não encontrando o que dizer ante aquele estranho caso.
Porém, ao vê-lo sair, ela indagou:
- Assim mesmo, não quer deixar o seu endereço? Se ele piorar, irei chamá-lo.
Guy de MaupassantExtraído do site A Gata por um Fio
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À Procura de Uma Dignidade

Clarice Lispec
A Srª Jorge B. Xavier simplesmente não saberia dizer como entrara. Por algum portão principal não fora. Pareceu-lhe vagamente sonhadora, ter entrado por uma espécie de estreita abertura em meio a escombros de construção, como se tivesse entrado de esguelha por um buraco feito só para ela. O fato é que quando viu já estava dentro.
E quando viu percebeu que estava muito, muito dentro. Andava interminavelmente pelos subterrâneos do Estádio de Futebol do Maracanã, ou, pelo menos, pareceram-lhe cavernas estreitas que davam para salas fechadas, e quando se abriam as salas só havia janelas que davam para o estádio. Este, àquela hora torradamente deserto, reverberava ao extremo sol dum calor inusitado que estava acontecendo naquele dia de pleno inverno.
Então a senhora seguiu por um corredor sombrio. Este a levou igualmente a outro mais sombrio. Pareceu-lhe que o teto dos subterrâneos era baixo.
E aí este corredor a levou a outro que a levou por sua vez a outros.
Dobrou o corredor deserto. E aí em outra esquina.
Então continuou automaticamente a entrar pelos corredores que sempre davam para outros corredores. Onde seria a sala da aula inaugural? Pois junto desta encontraria as pessoas com quem marcara o encontro. A conferência era capaz de já ter começado. Ia perdê-la, ela que se forçava a não perder nada de cultural porque assim se mantinha jovem por dentro, já que até por fora ninguém adivinhava que tinha quase setenta anos, todos lhe davam uns cinqüenta e sete.
Mas agora, perdida nos meandros internos e escuros do Maracanã, a senhora já arrastava pés pesados de velha.
Foi então que subitamente encontrou num corredor um homem surgido do nada, e perguntou-lhe pela conferência que o homem que também surgira repentinamente ao dobrar o corredor.
Então este segundo homem informou que havia visto perto da arquibancada da direita, em pleno estádio aberto, “duas damas e um cavalheiro, uma de vermelho”. A Srª Xavier tinha dúvida de que essas pessoas fossem o grupo com quem devia se encontrar antes da conferência, e na verdade já perdera de vista o motivo pelo qual caminhava sem nunca mais parar. De qualquer modo seguiu o homem para o estádio, onde parou ofuscada pelo espaço oco de luz escancarada e de mudez aberta, o estádio nu desventrado, sem bola nem futebol. Sobretudo sem multidão. Havia uma multidão que existia pelo vazio de sua ausência absoluta.
As duas damas e o cavalheiro já haviam sumido por algum corredor?
Então o homem disse com desafio exagerado: “Pois vou procurar para a senhora e vou encontrar de qualquer jeito essa gente, eles não podem ter sumido no ar”.
E de fato de muito longe ambos os viram. Mas um segundo depois tornaram a desaparecer. Parecia um jogo infantil onde gargalhadas amordaçadas riam da Srª Jorge B. Xavier.
Então entrou com o homem por outros corredores. Aí este homem também sumiu numa esquina.
A senhora já desistira da conferência, que no fundo pouco lhe importava. Contanto que saísse daquele emaranhado de caminhos sem fim. Não haveria porta de saída? Então sentiu como se estivesse dentro dum elevador enguiçado entre um andar e outro. Não haveria porta de saída?
E eis que subitamente lembrou-se das palavras de informação da amiga pelo telefone: “Fica mais ou menos perto do Estádio do Maracanã”. Diante dessa lembrança estendeu o seu engano de pessoa avoada e distraída que só ouvia as coisas pela metade, a outra ficando submersa. A Srª Xavier era muito desatenta. Então, pois, não era no Maracanã o encontro, era apenas perto dali. No entanto o seu pequeno destino quisera-a perdida no labirinto.
Sim, então a luta recomeçou pior ainda: queria por força sair de lá e não sabia como nem por onde. E de novo apareceu no corredor aquele homem que procurava as pessoas e que de novo lhe garantiu que as acharia porque não podiam ter sumido no ar. Ele disse assim mesmo:
– As pessoas não podem ter sumido no ar!
A senhora informou:
– Não precisa mais se incomodar de procurar, sim? muito obrigado, sim? porque o lugar onde preciso encontrar as pessoas não é no Maracanã.
O homem parou imediatamente de andar para olhá-la perplexo:
– Então que é que a senhora está fazendo aqui?
Ela quis explicar que sua vida era assim mesmo, mas nem sequer sabia o que queria dizer com o “assim mesmo” nem com “sua vida”, por isso nada respondeu. O homem insistiu na pergunta, entre desconfiado e cauteloso: “Que é que ela estava fazendo ali?” Nada, respondeu apenas em pensamento a senhora, já então pressentes a cair de cansaço. Mas não lhe respondeu, deixou-o pensar que era louca. Além do mais ela nunca se explicava. Sabia que o homem a julgava louca – e quem dissera que não? Se bem que soubesse ter a chamada saúde mental tão boa que só podia se comparar com sua saúde física. Saúde física já agora rebentada, pois rastejava os pés de muitos anos de caminho pelo labirinto. Sua via-crucis. Estava vestida de lã muito grossa e sufocava suada ao inesperado calor dum auge de verão, esse dia de verão que era um aleijão do inverno. As pernas lhe doíam, doíam ao peso da velha cruz. Já se resignara dalgum modo a nunca mais sair do Maracanã e a morrer ali de coração exangue.
Então, e como sempre, era só depois de desistir das coisas desejadas que elas aconteciam. O que lhe ocorreu de repente foi uma idéia: “Mas que velha maluca eu sou”. Em vez de continuar a perguntar pelas pessoas que não estavam lá, porque não procurava o homem e indagava como se saía dos corredores? Pois o que queria era apenas sair e não encontrar-se com ninguém.
Achou finalmente o homem, ao dobrar duma esquina. E falou-lhe com voz um pouco trêmula e rouca, por cansaço e medo de ter vã esperança. O homem desconfiado concordou mais do que depressa que era melhor mesmo que ela fosse embora para casa e disse-lhe com cuidado: “A senhora parece que não está muito bem da cabeça, talvez seja este calor esquisito”.
Dito isto, entrou com ela no primeiro corredor e na esquina avistavam-se os dois largos portões abertos. Apenas assim? Tão fácil assim? Apenas assim.
Então a senhora pensou sem nada concluir que só para ela é que se havia tornado impossível achar a saída. A Srª Xavier estava apenas um pouco espantada e ao mesmo tempo habituada. Na certa, cada um tinha o próprio caminho a percorrer interminavelmente, fazendo isto parte do destino, no qual ela não sabia se acreditava ou não.
E havia o táxi passando. Mandou-o parar e disse-lhe, controlando a voz que estava cada vez mais velha e cansada:
– Moço, não sei bem o endereço, esqueci. Mas o que sei é que a casa fica numa rua-não-me-lembro-mais-o-quê mas que fala em “Gusmão” e faz esquina com uma rua se não me engano chamada Coronel-não-sei-quê.
O chofer foi paciente como com uma criança: “Pois então não se afobe, vamos procurar calmamente uma rua que tenha Gusmão no meio e Coronel no fim”, disse virando-se para trás num sorriso, e aí piscou-lhe um olho de conivência que parecia indecente. Partiram aos solavancos que lhe sacudiam as entranhas.
Então de repente reconheceu as pessoas que procurava e que se achavam na calçada defronte duma casa grande. Era porém como se a finalidade fosse chegar e não a de ouvir a palestra que a essa hora estava totalmente esquecida, pois a Srª Xavier se perdera do seu objetivo. E não sabia em nome de que caminhara tanto. Então viu que se cansara para além das próprias forças e quis ir embora, a conferência era um pesadelo. Pediu a uma senhora importante e vagamente conhecida e que tinha carro com chofer para levá-la para casa, porque não estava se sentindo bem com o calor estranho. O chofer só viria daí a uma hora. Então a Srª Xavier sentou-se numa cadeira que tinham posto para ela no corredor, sentou-se empertigada na sua cinta apertada, fora da cultura que se processava defronte na sala fechada. Donde não se ouvia som algum. Pouco lhe importava a cultura. E ali estava nos labirintos de sessenta segundos e de sessenta minutos que a encaminhariam a uma hora.
Então a senhora importante veio e disse assim: que a condução estava à porta mas que lhe afirmava que, como o motorista avisara que ia demorar muito, em vista de a senhora não estar passando bem, mandara parar o primeiro táxi que vira. Porque a Srª Xavier não tivera ela própria a idéia de chamar um táxi, se submetera aos meandros do tempo de espera. Então agradeceu ao motorista com extrema delicadeza. A senhora era sempre muito delicada e educada. Entrou no táxi e disse:
– Leblon, por obséquio.
Tinha o cérebro oco, parecia-lhe que sua cabeça estava em jejum.
Daí a pouco notou que rodavam e rodavam mas que de novo ter minavam por voltar a uma mesma praça. Porque não saíam de lá? Não havia de novo caminho de saída? O motorista acabou confessando que não conhecia a Zona Sul, que só trabalhava na Zona Norte. Ela não sabia como ensinar-lhe o caminho. Cada vez mais a cruz dos anos pesava-lhe e a nova falta de saída apenas renovava a magia negra dos corredores do Maracanã. Não havia meio de se livrarem da praça? Então o motorista disse-lhe que tomasse outro táxi, e chegou mesmo a fazer sinal para que passara ao lado. Ela agradeceu comedidamente, fazia cerimônia com as pessoas, mesmo com as conhecidas. Além do que era muito gentil. No novo táxi disse a medo:
– Se o senhor não se incomodar, vamos para o Leblon.
E simplesmente saíram logo da praça e entraram por novas ruas.
Foi ao abrir com a chave a porta do apartamento que teve vontade apenas mental e fantasiada de soluçar bem alto. Mas ela não era de soluçar nem de reclamar. De passagem avisou à empregada que não atenderia telefonemas. Foi direto ao quarto, tirou toda a roupa, engoliu sem água uma pílula e esperou que esta desse resultado.
Enquanto isso, fumava. Lembrou-se de que era mês de agosto, dava azar. Mas setembro viria um dia como porta de saída. E setembro era por algum motivo o mês de maio: um mês mais leve e mais transparente. Foi vagamente pensando nisso que a sonolência finalmente veio e ela adormeceu. Quando acordou, horas depois, viu que chovia uma chuva fina e gelada, fazia um frio de lâmina de faca. Nua na cama, ela enregelava. Então achou muito curioso ser uma velha nua. Lembrou-se de que planejara comprar uma écharpe de lã. Olhou o relógio: ainda encontraria o comércio aberto. Tomou um táxi e disse:
– Ipanema, por obséquio.
O homem disse:
– Como é que é? É para o Jardim Botânico?
– Ipanema, por favor – repetiu a senhora, bastante surpreendida. Era o absurdo do desencontro total: pois que havia em comum entre as palavras Ipanema e Jardim Botânico? Mas de novo pensou vagamente que “era assim mesmo a sua vida”.
Fez rapidamente a compra e viu-se na rua já escurecida sem ter que fazer. Pois o Sr. Jorge B. Xavier viajara para São Paulo no dia anterior e só voltaria no dia seguinte.
Então, de novo em casa, entre tomar nova pílula para dormir ou fazer alguma outra coisa, optou pela segunda hipótese, pois lembrou-se de que agora poderia voltar a procurar a letra de câmbio perdida. O pouco que entendia era que aquele papel representava dinheiro. Há dois dias procurara minuciosamente pela casa toda, e até pela cozinha, mas em vão. Agora lhe ocorria: e por que não debaixo da cama? Talvez. Ajoelhou-se no chão. Mas logo cansou-se de só estar apoiada nos joelhos e apoiou-se também nas duas mãos.
Então percebeu que estava de quatro.
Assim ficou um tempo, talvez meditativa, talvez não. Quem sabe, a Srª estivesse cansada de ser um ente humano. Estava sendo uma cadela de quatro. Sem nobreza nenhuma. Perdida a altivez última. De quatro, um pouco pensativa talvez. Mas debaixo da cama só havia poeira.
Levantou-se com bastante esforço das juntas desarticuladas e viu que nada mais havia a fazer senão considerar com realismo – e era com um esforço penoso que via a realidade – considerar com realismo que a letra estava perdida e que continuar a procurá-la seria nunca sair do Maracanã.
E, como sempre, já que desistira de procurar, ao abrir a gavetinha de lenços para tirar um – lá estava a letra de câmbio.
Então a senhora, cansada pelo esforço de ter ficado de quatro, sentou-se na cama e começou muito à toa a chorar de manso. Parecia mais uma lengalenga árabe. Há trinta anos não chorava, mas agora estava tão cansada. Se é que aquilo era choro. Não era. Era alguma coisa. Finalmente, assoou o nariz. Então pensou o seguinte: que ela forçaria o “destino” e teria um destino maior. Com força de vontade se consegue tudo, pensou sem a menor convicção. E isso de estar presa a um destino ocorrera-lhe porque já começara sem querer a pensar em “aquilo”.
Aconteceu então que a senhora também pensou o seguinte: era tarde demais para ter um destino. Pensou que bem faria qualquer tipo de permuta com outro ser. Mas lhe ocorreu que não havia com quem se permutar: quem quer que fosse, ela era ela e não podia se transformar em outra única. Cada um era único. A Srª Jorge B. Xavier também era.
Mas tudo o que lhe acontecera ainda era preferível a sentir “aquilo”. E eis que de repente “aquilo” veio com seus longos corredores sem saída. E sem o menor pudor, “aquilo” era a fome dolorosa de suas entranhas, fome de ser possuída pelo inalcançável ídolo de televisão. Não perdia um só programa dele. Então, já que não pudera se impedir de pensar nele, o jeito era deixar-se pensar e relembrar o rosto de menina-moça do cantor Roberto Carlos, meu amor.
Foi lavar as mãos sujas de poeira e viu-se no espelho da pia. Então a Srª Xavier pensou assim: “Se eu quiser muito, mas muito mesmo, ele será meu por ao menos uma noite”. Acreditava vagamente na força de vontade. De novo se emaranhou no desejo, que era retorcido e estrangulado.
Mas, quem sabe?, se desistisse de Roberto Carlos, então é que as coisas entre ele e ela aconteceriam. A Srª Xavier meditou um pouco sobre o assunto. Então espertamente fingiu que desistia de Roberto Carlos. Mas bem sabia que a desistência mágica só dava resultados positivos quando era real, e não apenas um truque como modo de conseguir. A realidade exigira muito da senhora. Examinou-se ao espelho para ver se o rosto se tornara bestial sob a influência de seus sentimentos. Mas era um rosto quieto que já deixara há muito de representar o que sentia. Aliás, seu rosto nunca exprimira senão boa educação. E agora era apenas a máscara duma mulher de setenta anos. Sua cara levemente maquilhada pareceu-lhe e dum palhaço. A senhora forçou sem vontade um sorriso para ver se melhorava. Não melhorou.
Por fora – viu no espelho – ela era uma coisa seca como um figo seco. Mas por dentro não era estorricada. Pelo contrário. Parecia por dentro uma gengiva úmida, mole assim como gengiva desdentada.
Então procurou um pensamento que a espiritualizasse ou que a estorricasse de vez. Mas nunca fora espiritual. E por causa de Roberto Carlos a senhora estava envolta nas trevas da matéria, onde ela era profundamente anônima.
De pé no banheiro era tão anônima quanto uma galinha.
Numa fração de fugitivo segundo quase inconsciente, vislumbrou quase todas as pessoas anônimas. Porque ninguém é o outro e outro não conhecia o outro. Então – então a pessoa é anônima. E agora estava emaranhada naquele poço fundo e mortal, na revolução do corpo. Corpo cujo fundo não se via e que ra a escuridão das trevas malignas de seus instintos vivos como lagartos e ratos. E tudo fora de época, fruto fora de estação? Por que nunca lhe tinham avisado as outras velhas que até o fim isso podia acontecer? Nos homens velhos bem vira olhares lúbricos. Mas nas velhas não. Fora de estação. E ela viva como se ainda fosse alguém, ela que não era ninguém.
A Srª Jorge B. Xavier era ninguém.
Então quis ter sentimentos bonitos e românticos em relação à delicadeza de rosto de Roberto Carlos. Mas não conseguiu: a delicadeza dele apenas a levava a um corredor escuro de sensualidade. E a danação era a lascívia. Era fome baixa: ela queria comer a boca de Roberto Carlos. Não era romântica, ela era grosseira em matéria de amor. Ali no banheiro, defronte do espelho da pia.
Com sua idade indelevelmente maculada. Sem ao menos um pensamento sublime que lhe servisse de leme e que enobrecesse a sua existência.
Começou a desmanchar o coque dos cabelos e a penteá-los devagar. Estavam precisando de nova pintura, as raízes brancas já apareciam. A senhora pensou o seguinte: na minha vida nunca houve um clímax como nas histórias que se lêem. O clímax era Roberto Carlos. Meditativa, concluiu que iria morrer secretamente assim como secretamente vivera. Mas também sabia que toda morte é secreta.
No fundo de sua futura morte imaginou ver no espelho a figura cobiçada de Roberto Carlos, com aqueles macios cabelos encaracolados que ele tinha. Ali estava, presa ao desejo fora de estação assim como o dia de verão em pleno inverno. Presa no emaranhado dos corredores do Maracanã. Presa ao segredo mortal das velhas. Só que ela não estava habituada a ter quase setenta anos, faltava-lhe prática e não tinha a menor experiência.
Então disse algo e bem sozinha:
– Robertinho Carlinhos.
E acrescentou ainda: meu amor. Ouviu sua voz com estranheza, como se estivesse pela primeira vez fazendo, sem nenhum pudor ou sentimento de culpa, a confissão que no entanto deveria ser vergonhosa. A senhora devaneou que era capaz de Robertinho não querer aceitar o seu amor porque tinha ela própria a consciência de que este amor era muito piegas, melosamente voluptuoso e guloso. E Roberto Carlos parecia tão casto, tão assexuado.
Seus lábios levemente pintados ainda seriam beijáveis? Ou por acaso era nojento beijar boca de velha? Examinou bem de perto e inexpressivamente os próprios lábios. E ainda inexpressivamente cantou o estribilho da canção mais famosa de Roberto Carlos: “Quero eu você me aqueça neste inverno e que tudo o mais vá para o inferno”.
Foi então que a Srª Jorge B. Xavier bruscamente dobrou-se sobre a pia como se fosse vomitar as vísceras e interrompeu sua vida com uma mudez estraçalhante: tem! que! haver! uma! porta! de saííííííída!
Clarice Lispector
Extraído do site ebaH
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Um Diálogo no Monte Pentélico


Virginia Woolf
“Aconteceu, e não há muitas semanas, que um grupo de turistas ingleses desceu a encosta do Pentélico. Eles porém teriam sido os primeiros a reti?car esta frase e a assinalar o quanto de inexatidão e injustiça se continha nessa descrição de seu grupo. Porque chamar um homem de turista, quando o encontramos no exterior, é de?nir não apenas suas circunstâncias, mas também sua alma; e suas almas inglesas, teriam dito — mas os burros assim tropeçam nas pedras —, não estavam sujeitas a limitações desse tipo. Os alemães são turistas e os franceses são turistas, mas os ingleses são gregos. Tal era o sentido da conversa entre eles, e devemos ouvir suas palavras, que nisso, de fato, eram de muito bom senso. O monte Pentélico, como sabemos nós que lemos o Baedeker, traz porém em seu ?anco a nobre cicatriz dos ferimentos sofridos nas mãos dos canteiros gregos que o talhavam, recebendo de Fídias um sorriso, quando não um insulto, como recompensa por seu trabalho.1 Assim, para fazer justiça ao monte, deve-se meditar sobre vários temas à parte e combiná-los da melhor maneira possível. Não se deve tomá-lo apenas por aquele contorno que passava por tantas janelas gregas — Platão erguia os olhos da página, nas manhãs ensolaradas —, mas também como o?cina de trabalho e local de moradia onde inumeráveis escravos iam perder a vida. Para o grupo, quando ao meio-dia eles desmontaram, foi salutar ter de cambalear penosamente por entre os blocos de mármore em bruto que, por alguma razão, tinham sido esquecidos ou deixados de lado quando as carretas desciam para Atenas. Foi salutar porque na Grécia pode-se esquecer que as estátuas sejam feitas de mármore; foi bené?co ver como se opõe o mármore, sólido e fragoso e intratável, ao cinzel do escultor. “Assim eram os gregos!” Quem ouvisse tal grito poderia supor que cada um dos falantes tinha alguma conquista pessoal a celebrar, sendo ele mesmo o generoso vencedor da pedra. Que outrora a forçara, com suas próprias mãos, a entregar seus Hermes, seus Apolos. Mas então os burros, cujos ancestrais tinham sido estabulados na gruta, deram ?m à meditação e os cavaleiros, seis em ?la, foram descendo gravemente pelo ?anco do monte. Tinham visto Maratona e Salamina, e Atenas, se não houvesse uma nuvem que a acariciava, também teria sido deles; de alguma forma, sentiam-se municiados, de ambos os lados, por presenças tremendas. E, para mostrarem-se devidamente inspirados, não só repartiram sua garrafa de vinho com o séquito de jovens gregos do campo, imundos, mas até condescenderam em dirigir-se a eles na própria língua local, como a falaria Platão, se tivesse aprendido grego em Harrow. Que outros decidam se foram justos ou não; mas o fato de palavras gregas faladas em solo grego serem mal compreendidas por gregos destrói de um só golpe toda a população da Grécia, homens, mulheres e crianças. Uma palavra apropriada, em face da crise, lhes veio aos lábios; uma palavra que Sófocles poderia ter dito e que Platão teria sancionado; eles eram “bárbaros”. Denunciá-los assim era não só desincumbir-se de um dever em relação aos mortos, mas também proclamar os legítimos herdeiros, e as pedreiras de mármore do Pentélico, por alguns minutos, estrondearam a notícia a todos que pudessem dormir debaixo dos seus calhaus ou ocupar as cavernas. O povo espúrio foi condenado; a raça escura e tagarela, de língua solta e instável de intenções, que por tanto tempo havia parodiado a fala e surrupiado o nome dos grandes, foi pega e condenada. Obediente ao grito do arrieiro ao descer aos locais de sua guarda — uma mula branca puxava a ?la — com a boa vontade de alguém que livra as próprias costas a cada golpe que aplica sobre costas alheias. Pois o inglês, quando gritou, julgou que era melhor ir mais rápido. Não poderia ter-se mostrado mais feliz como crítico; o momento possuía sua própria palavra; poeta algum faria mais do que isso; e a um prosador seria fácil ter feito menos. Assim, com aquele simples grito, os ingleses saíram aos tropeções de seu clímax para descer a montanha em algazarra, tão despreocupados e jucundos como se a terra fosse deles. Mas a descida do Pentélico a certa altura se aplaina numa chapada verde onde a natureza parece soerguer-se um momento antes de mergulhar novamente encosta abaixo. Há grandes plátanos de mãos benevolentes abertas, e há cômodas moitinhas, dispostas em estrita ordem caseira; há um riacho do qual se pode pensar que cante loas e as delícias do vinho e da canção. Poder-se-ia ouvir a voz de Teócrito, na queixa que fazia nas pedras, e alguns dos ingleses a ouviram mesmo, embora o texto, nas prateleiras em casa, andasse bem empoeirado. Aqui, seja como for, a natureza e o cantar do espírito clássico impulsionaram os seis amigos a desmontar e descansar um pouco. Seus guias se recolheram, mas não tão longe que não pudessem ser vistos em seus trejeitos de bárbaros, pulando e cantando, puxando-se uns aos outros pela manga e falando das uvas já maduras que pendiam nos campos. Mas se há coisa que sabemos dos gregos é que eram gente tranqüila, muito expressiva ao gesticular e falar, e aqueles, ao sentarem-se à beira do riacho, sob um plátano, dispuseram-se como um pintor de vasos teria certamente gostado de retratá-los: o rosto escuro do velho, quando seu queixo caiu sobre o cajado, virou-se para cima do jovem estendido no gramado a seus pés. Mulheres sérias, caladas, passavam de roupa branca por trás, equilibrando ânforas nos ombros. Nenhum especialista da Europa poderia recompor esse quadro, nem convencer nossos amigos de que algum teria mais direito de construir tais visões do que eles mesmos. Estenderam-se pois na sombra, e não foi culpa deles, nem dos antigos, se seu discurso não esteve à altura, na concepção pelo menos, de seu nobre modelo. Mas como, em se tratando de diálogos, escrever é ainda mais difícil do que falar, como é duvidoso se diálogos escritos foram jamais falados ou se diálogos falados jamais foram escritos, trataremos de salvar tão-somente fragmentos concernentes à nossa história. Não deixaremos de dizer todavia que a conversa entre eles era a melhor conversa do mundo.”
Virginia WoolfExtraído do site Estação Veja

 


O Rouxinol e a Rosa

_ Ela disse que dançaria comigo se eu lhe levasse rosas vermelhas – exclamou o Estudante – mas estamos no inverno e não há uma única rosa no jardim…
Por entre as folhas, do seu ninho, no carvalho, o Rouxinol o ouviu e, vendo-o ficou admirado…
_ Não há nenhuma rosa vermelha no jardim! – disse o Estudante, com os olhos cheios de lágrimas. – Ah! Como a nossa felicidade depende de pequeninas coisas! Já li tudo quanto os sábios escreveram. A filosofia não tem segredos para mim e, contudo, a falta de uma rosa vermelha é a desgraça  da minha vida.
Eis, afinal, um verdadeiro apaixonado! – disse o Rouxinol. Tenho cantado o Amor noite após noite, sem conhecê-lo no entanto; noite após noite falei dele às estrelas, e agora o vejo… O cabelo é negro como a flor do jacinto e os lábios vermelhos como a rosa que deseja; mas o amor pôs-lhe na face a palidez do marfim e o sofrimento marcou-lhe a fronte.
_ Amanhã à noite o Príncipe dá um baile, murmurou o Estudante, e a minha amada se encontrará entre os convidados. Se levar uma rosa vermelha, dançará comigo até a madrugada. Somente se lhe levar uma rosa vermelha… Ah… Como queria tê-la em meus braços, sentir-lhe a cabeça no meu ombro e a sua mão presa a minha. Não há rosa vermelha em meu jardim… e ficarei só; ela apenas passará por mim… Passará por mim… e meu coração se despedaçará.
_ Eis um verdadeiro apaixonado… – pensou o Rouxinol. – Do que eu canto, ele sofre. O que é dor para ele é alegria para mim. Grande maravilha, na verdade, é o Amar! Mais precioso que esmeraldas e mais caro que opalas finas. Pérolas e granada não podem comprá-lo, nem se oferece nos mercados. Mercadores não o vendem, nem o conferem em balanças a peso de ouro.
_ Os músicos da galeria – prosseguiu o Estudante – tocarão nos seus instrumentos de corda e, ao som de harpas e violinos, minha amada dançará. Dançará tão leve, tão ágil, que seus pés mal tocarão o assoalho e os cortesãos, com suas roupas de cores vivas, reunir-se-ão em torno dela. Mas comigo não bailará, porque não tenho uma rosa vermelha para dar-lhe… – e atirando-se à relva, ocultou nas mãos o rosto e chorou.
_ Por que está chorando? – perguntou um pequeno lagarto ao passar por ele, correndo, de rabinho levantado.
_ É mesmo! Por que será? – Indagou uma borboleta que perseguia um raio de sol.
_ Por quê? – sussurrou uma linda margarida à sua vizinha.
_ Chora por causa de uma rosa vermelha, – informou o Rouxinol.
_ Por causa de uma rosa vermelha? – exclamaram – Que coisa ridícula! E  o lagarto, que era um tanto irônico, riu à vontade.
Mas o Rouxinol compreendeu a angústia do Estudante e, silencioso, no carvalho, pôs-se a meditar sobre o mistério do Amor.
Subitamente, abriu as asas pardas e voou.
Cortou, como uma sombra, a alameda, e como uma sombra, atravessou o jardim.
Ao centro do relvado, erguia-se uma roseira. Ele a viu. Voou para ela e posou num galho.
_ Dá-me uma rosa vermelha – pediu – e eu cantarei para ti a minha mais bela canção!
_ Minhas rosas são brancas; tão brancas quanto a espuma do mar, mais brancas que a neve das montanhas. Procura minha irmã, a que enlaça o velho relógio-de-sol. Talvez te ceda o que desejas.
Então o Rouxinol voou para a roseira, que enlaçava o velho relógio-de-sol.
_ Dá-me  uma rosa vermelha – pediu – e eu te cantarei minha canção mais linda.
A roseira sacudiu-se levemente.
_ Minhas rosas são amarelas como as cabelos dourados das donzelas, ainda mais amarelas que o trigo que cobre os campos antes da chegada de quem o vai ceifar. Procura a minha irmã, a que vive sob a janela do Estudante. Talvez ela possa te possa ajudar.
O Rouxinol então, dirigiu o vôo para  a roseira que crescia sob a janela do Estudante.
_ Dá-me uma rosa vermelha – pediu – e eu te cantarei a mais linda de minhas canções.
A roseira sacudiu-se levemente.
_ Minhas rosas são vermelhas, tão vermelhas quanto os pés das pombas, mais vermelhas que os grandes leques de coral que oscilam nos abismos profundos do oceano. Contudo, o inverno regelou-me até as veias, a geada queimou-me os botões e a tempestade quebrou-me os galhos. Não darei rosas este ano.
_ Eu só quero uma rosa vermelha, repetiu o Rouxinol, – uma só rosa vermelha. Não haverá meio de obtê-la?
_ Há, respondeu  a Roseira, mas é meio tão terrível que não ouso revelar-te.
_ Dize. Não tenho medo.
_ Se queres uma rosa vermelha, explicou a roseira, hás de fazê-la de música, ao luar, tingi-la com o sangue de teu coração. Tens de cantar para mim com o peito junto a um espinho. Cantarás toda a noite para mim e o espinho deve ferir teu coração e teu sangue de vida deve infiltrar-se em minhas veias e tornar-se meu.
_ A morte é um preço exagerado para uma rosa vermelha – exclamou o Rouxinol – e a Vida é preciosa… É tão bom voar, através da mata verde e contemplar o sol  em seu esplendor dourado e a lua em seu carro de pérola…O aroma do espinheiro é suave, e suaves são as campânulas ocultas no vale, e as urzes tremulantes na colina. Mas o Amor é melhor que a Vida. E que vale o coração de  um pássaro comparado ao coração de um homem?
Abriu as asas pardas para o vôo e ergueu-se no ar. Passou pelo jardim como uma sombra e, como uma sombra, atravessou a alameda.
O Estudante estava deitado na relva, no mesmo ponto em que o deixara, com os lindos olhos inundados de lágrimas.
_ Rejubila-te – gritou-lhe o Rouxinol – Rejubila-te; terás a tua rosa vermelha. Vou fazê-la de música, ao luar. O sangue de meu coração a tingirá. Em conseqüência só te peço que sejas sempre verdadeiro amante, porque o Amor é mais sábio do que a Filosofia; mais poderoso que o poder.. Tem as asas da cor da chama e da cor da chama tem o corpo. Há doçura de mel em seus braços e seu hálito lembra o incenso.
O Estudante ergueu a cabeça e escutou. Nada pode entender, porém, do que dizia o Rouxinol, pois sabia apenas o que está escrito nos livros.
Mas o Carvalho entendeu e ficou melancólico, porque amava muito o pássaro que construíra ninho em seus ramos.
_ Canta-me um derradeiro canto – segredou-lhe – sentir-me-ei tão só depois da tua partida.
Então o Rouxinol cantou para o Carvalho, e sua voz fazia lembrar a água a borbulhar de uma jarra de prata.
Quando o canto finalizou, o Estudante levantou-se, tirando do bolso um caderninho de notas e um lápis.
_ Tem classe, não se pode negar – disse consigo – atravessando a alameda. Mas terá sentimento? Não creio. É igual a maioria dos artistas. Só estilo, sinceridade nenhuma. Incapaz de sacrificar-se por outrem. Só pensa e cantar e bem sabemos quanto a Arte é egoísta. No entanto, é forçoso confessar, possui maravilhosas notas na voz. Que  pena não terem significação alguma, nem realizarem nada realmente bom!
Foi para o quarto, deitou-se e, pensando na amada, adormeceu.
Quando a lua refulgia no céu, o Rouxinol voou para a Roseira e apoiou o peito contra o espinho. Cantou a noite inteira e o espinho mais e mais foi se enterrando em seu peito, e o sangue de sua vida lentamente se escoou…
Primeiro descreveu o nascimento do amor no coração de um menino e uma menina; e, no mais alto galho da Roseira, uma flor desabrochou, extraordinária, pétala por pétala, acompanhando um canto e outro canto. Era pálida, a princípio, qual a névoa que esconde o rio, pálida qual os  pés da manhã e as asas da alvorada. Como sombra de rosa num espelho de prata, como sombra de rosa em água de lagoa era a rosa que apareceu no mais alto galho da Roseira.
Mas a Roseira pediu ao Rouxinol que se unisse mais ao espinho. – Mais ainda, Rouxinol, – exigiu a Roseira, – senão o dia raia antes que eu acabe a rosa.
O Rouxinol então apertou ainda mais o espinho junto ao peito, e cada vez mais profundo lhe saía o canto porque ele cantava o nascer da paixão na alma do homem e da mulher.
E tênue nuance rosa nacarou as pétalas, igual ao rubor que invade a face do noivo quando beija a noiva nos lábios.
Mas o espinho não lhe alcançava ainda o coração e o coração da flor continuava branco – poissomente o coração de um Rouxinol pode avermelhar o coração de rosa.
_ Mais ainda, Rouxinol, – clamou a Roseira – raiar o dia antes que eu finalize a rosa.
E o Rouxinol, desesperado, calcou-se mais forte no espinho, e o espinho lhe feriu o coração, e uma punhalada de dor o traspassou.
Amarga, amarga lhe foi a angústia e cada vez mais fremente foi o canto, porque ele cantava o amor que a morte aperfeiçoa, o amor que não morre nem no túmulo.
E a rosa maravilhosa tornou-se purpurina como a rosa do céu oriental. Suas pétalas ficaram rubras e, vermelho como um rubi, seu coração.
Mas a voz do Rouxinol se foi enfraquecendo, as pequeninas asas começaram a estremecer e uma névoa cobriu-lhe o olhar, o canto tornou-se débil e ele sentiu qualquer coisa apertar-lhe a garganta.
Então, arrancou do peito o derradeiro grito musical.
Ouviu-o a lua branca, esqueceu-se da Aurora e permaneceu no céu.
A rosa vermelha o ouviu, e trêmula de emoção, abriu-se à aragem fria da manhã. Transportou-o o Eco, à sua caverna purpurina, nos montes, despertando os pastores de seus sonhos. E ele levou-os através dos caniços dos rios e eles transmitiram sua mensagem ao mar.
_ Olha! Olha! Exclamou a Roseira. – A rosa está pronta, agora.
Ao meio dia o Estudante abriu a janela e olhou.
_ Que sorte! – disse – Uma rosa vermelha! Nunca vi rosa igual em toda a minha vida. É tão linda que tem certamente um nome complicado em latim. E curvou-se para colhê-la.
Depois, pondo o chapéu, correu à casa do professor.
_ Disseste que dançarias comigo se eu te trouxesse uma rosa vermelha, – lembrou o Estudante. – Aqui tens a rosa mais linda e vermelha de todo o mundo. Hás de usá-la, hoje a noite, sobre ao coração, e quando dançarmos juntos ela te dirá o quanto te amo.
A moça franziu a testa.
_ Esta rosa não combina com o meu vestido, disse. Ademais, o Capitão da Guarda mandou-me jóias verdadeiras, e jóias, todos sabem, custam muito mais do que flores…
_ És muito ingrata! – exclamou o Estudante, zangado. E atirou a rosa a sarjeta, onde a roda de um carro a esmagou.
_ Sou ingrata? E o senhor não passa de um grosseirão. E, afinal de contas, quem és? Um simples estudante… não acredito que tenhas fivelas de prata, nos sapatos, como as tem o Capitão da Guarda… – e a moça levantou-se e entrou em casa.
_ Que coisa imbecil, o Amor! – Resmungou o estudante, afastando-se. – Nem vale a utilidade da Lógica, porque não prova nada, está sempre prometendo o que não cumpre e fazendo acreditar em mentiras. Nada tem de prático e como neste século o que vale é a prática, volto à Filosofia e vou estudar metafísica.
Retornou ao quarto, tirou da estante um livro empoeirado e pôs-se a ler…
Oscar Wild
Extraído do site Cultura Brasil

O Corvo
 Edgar Allan Poe
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
“Uma visita”, eu me disse, “está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais.”
  
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu’ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P’ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!
  
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
“É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais”.
  
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
“Senhor”, eu disse, “ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi…” E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais. 
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais. 
Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
“Por certo”, disse eu, “aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.”
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
“É o vento, e nada mais.” 
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais. 
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
“Tens o aspecto tosquiado”, disse eu, “mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.”
Disse o corvo, “Nunca mais”. 
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome “Nunca mais”. 
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, “Amigo, sonhos – mortais
Todos – todos já se foram. Amanhão também te vais”.
Disse o corvo, “Nunca mais”. 
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
“Por certo”, disse eu, “são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp’rança de seu canto cheio de ais
Era este “Nunca mais”. 
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu’ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele “Nunca mais”. 
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo one ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais! 
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
“Maldito!”, a mim disse, “deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!”
Disse o corvo, “Nunca mais”. 
“Profeta”, disse eu, “profeta – ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, “Nunca mais”. 
“Profeta”, disse eu, “profeta – ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Édem de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!”
Disse o corvo, “Nunca mais”.
“Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!”, eu disse. “Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!”
Disse o corvo, “Nunca mais”. 
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á… nunca mais!
Edgar Allan PoeTradução de Fernando Pessoa
Fonte desconhecida

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O Subsolo

Fiódor Dostoiévski



Eu sou um homem doente… Sou um ho­mem malvado. Sou um homem desa­gradável. Creio que tenho uma doença do fígado. Aliás, não compreendo abso­lutamente nada da minha moléstia e não sei mesmo exatamente onde está o mal.
Não me cuido, nunca me cuidei, se bem que estime os mé­dicos e a medicina. Demais, sou extremamente supersticioso, o bastante, em todo o caso, para respeitar a medicina (sou bastante instruído: poderia então não ser supersticioso, mas sou). Não! Se não me trato, é pura maldade de minha parte. Não sabe­reis certamente compreender. Pois bem! eu compreendo. Não po­derei evidentemente explicar‑vos em que errei, agindo tão malvada­mente: sei muito bem que não são os médicos que eu incomodo, recusando‑me a tratar‑me. Não engano senão a mim mesmo; re­conheço‑o melhor que ninguém. Entretanto, é mesmo por malvadez que não me trato. Sofro do fígado! Tanto melhor! E tanto melhor ainda se o mal piora.
Há muito tempo já que eu vivo assim: uns vinte anos, pouco mais ou menos. Fui funcionário, pedi demissão. Fui um funcionário muito ruim. Era grosseiro e tinha prazer em sê‑lo. Podia bem me compensar desta maneira, pois que eu não aceitava gorjetas (esta brincadeira não tem graça; mas não a suprimirei. Escrevi‑a crendo que teria espírito; não a apagarei, entretanto, expressamente; porque vejo que queria me dar ares de importância). Quando os solicitantes em busca de informações se aproximavam da mesa diante da qual eu estava sentado, eu rangia os dentes; sentia uma volúpia indizível, quando conseguia causar‑lhes algum aborrecimento. Conseguia‑o quase sempre. Eram geralmente pessoas tímidas, acanhadas. Solicitantes, pois quê! Mas havia às vezes presumidos entre eles, petulantes, e eu detesta­va particularmente certo oficial. Ele não entendia de submissão e arrastava o grande sabre, de um modo detestável. Durante um ano e meio movi‑lhe guerra, por causa desse sabre, e finalmente saí vencedor: ele parou de teimar. Isto, aliás, se passava no tempo da minha mocidade.
Ora, sabeis, senhores, o que excitava sobretudo minha raiva, o que a tornava particularmente vil e estúpida? É que eu me intei­rava vergonhosamente, mesmo quando a minha bílis se esparramava mais violentamente, que eu não era mau homem, no fundo, não era nem mesmo um homem azedo, e que tomava gosto, muito simplesmente, em assustar os pardais. Tenho espuma na boca; mas, trazei‑me uma boneca, oferecei‑me uma chávena de chá bem doce, e é provável que eu me acalme; sentir‑me‑ei mesmo muito comovido. É verdade que, mais tarde, morderei os punhos de raiva, e de vergo­nha perderei o sono durante alguns meses. Sim, eu sou assim.
Menti antes, quando disse que tinha sido um mau funcionário. Foi por despeito que menti. Tentava muito simplesmente distrair­‑me com os solicitantes e esse oficial, e nunca pude conseguir tor­nar‑me realmente mau. Com efeito, verificava sempre em mim a presença de um grande número de elementos diversos que se opunham violentamente. Sentia‑os fervilharem em mim, por assim dizer. Sabia que estavam presentes sempre e aspiravam a mani­festar‑se do lado de fora, mas eu não os deixava; não, não lhes permitia evadirem‑se. Atormentavam‑me até à vergonha, até às con­vulsões. Oh! como eu estava fatigado! como estava saturado!
Mas não vos parece, senhores, que eu me arrependo e que vos peço perdão de não sei que crime? Estou certo, senhores, que ides imaginar isso… Mas aliás, digo‑vos que, quer vós o imagineis ou não, isso me é indiferente…
Jamais consegui nada, nem mesmo me tomar malvado; não con­segui ser belo, nem mau, nem canalha, nem herói, nem mesmo um inseto. E agora, termino a existência no meu cantinho, onde tento piedosamente me consolar, aliás sem sucesso, dizendo‑me que um homem inteligente não consegue nunca se tornar alguma coisa, e que só o imbecil triunfa. Sim, meus senhores. o homem do século XIX tem o dever de ser essencialmente destituído de cará­ter; está moralmente obrigado a isso. O homem que possui caráter, o homem. de ação, é um ser essencialmente medíocre. Tal é a convicção de meus quarenta anos de existência.
Tenho quarenta anos atualmente. Ora, quarenta anos, é toda a vida, é a profunda velhice. É inconveniente, é imoral, é vil viver além dos quarenta. Quem vive depois dos quarenta anos? Respondei sinceramente, honestamente! Vou dizer‑vos, sim, eu: os imbecis, os patifes, esses vivem mais de quarenta anos. Eu o pro­clamarei à face de todos os velhos, de todos os respeitáveis velhos, de todos os velhos de cabelos cor de prata e perfumados! Eu, o proclamarei à face do universo inteiro. Tenho o direito de falar ~ porque eu, eu viverei até os sessenta anos! até os setenta anos! até os oitenta anos! Mas esperai! Deixai‑me tomar fôlego!

Imaginais, certamente, senhores, que me proponho vos fazer rir? Enganais‑vos a esse respeito, como sobre o resto. Não sou de modo algum tio divertido como vos parece, ou quanto vos pode parecer. De resto, se agastados por tida essa tagarelice (estais irritados, sinto já), vós me perguntais o que sou, afinal de contas, responderei: sou um assistente de colégio. Entrei na administração para poder comer (mas unicamente para isso), e quando no ano ~o um dos meus parentes afastados me legou por testamento seis mil rublos, pedi depressa minha demissão e me enterrei no meu canto; ali morava já há muito tempo, mas instalei‑me agora definitivamente. O quarto que ocupo nos confins da cidade é feio, e desmantelado. Minha criada é uma velha camponesa que a burri­ce tornou malvada; além disso, cheira mal. Dizem‑me que o clima de Petersburgo me é prejudicial, e que a vida custa caro demais para os recursos ínfimos de que disponho. Sei disso; sei bem melhor que todos esses sábios conselheiros. Mas fico em Peters­burgo. Não deixarei Petersburgo porque.. . . Que eu parta ou não, aliás, que importa!. ..
Mas, do que um homem honesto pode falar com mais prazer?
Resposta: de si mesmo.
Pois bem! Vou então falar de mim mesmo!
II
Quero agora contar‑vos, meus senhores, quer o desejeis ou não, por que eu não consegui nem mesmo me tornar um inseto. Declaro‑vos solenemente: um grande número de vezes já tentei tor­nar‑me um inseto; mas não fui julgado digno disso.
Uma consciência clarividente demais, asseguro‑vos, senhores, é uma doença, uma doença muito real. Uma consciência ordinária nos basta mais que amplamente em nossa vida cotidiana, isto é, lima porção igual à metade, a um quarto da consciência outorgada ao homem culto do nosso século XIX e que, para sua desgraça, habita Petersburgo, a mais abstrata, a mais “premeditada” das ci­dades que existem sobre a terra (pois há cidades premeditadas e outras que não o são). Ter‑se‑ia, por exemplo, amplamente ~O suficiente dessa porção de consciência que possuem os homens ditos sinceros, espontâneos, assim como os homens de ação.
Imaginais, aposto, que escrevo tudo isto por atitude, para zom­bar dos homens de ação, para me dar importância, como esse arrastador de sabre de que falava há pouco, mas seria uma atitude de muito mau gosto. Quem pensaria então, dizei‑me, senhores, em se glorificar com suas doenças e fazer delas motivo de orgulho?
Mas que digo eu! Todo o mundo age assim. É precisamente de suas moléstias que cada um tira glória e eu, provavelmente, ainda mais que os outros. Não discutamos! Minha objeção é estúpida.
Entretanto ‑ estou firmemente convencido ‑ a consciência, toda consciência é uma enfermidade. Eu o sustento. Mas deixe­mos isto por agora. Respondei‑me alisto: como era possível que sempre, no instante mesmo ‑ sim, como se fosse de propósito ‑ precisamente no instante em que eu era o mais capaz de apreciar todas as nuanças do belo, do sublime, corno se dizia entre nós há pouco tempo, me acontecesse não somente pensar, mas fazer coisas tio incongruentes que… ações, para ser breve, que todos levam a cabo talvez bem, mas que eu praticava justamente quando tinha perfeita consciência de que era preciso me abster? Quanto mais o bem e todas as coisas “belas e sublimes” se tomavam claras à minha consciência, mais profundamente eu me afundava na minha lama, mais eu me sentia capaz de me enterrar definitivamen­te. Porém o que era particularmente notável, é que esse desacordo não parecia uma coisa fortuita, dependendo das circunstâncias, mas parecia vir por si e se produzir muito naturalmente. Dir‑se‑ia que era meu estado normal e de modo nenhum uma doença ou um vício; a tal ponto que, finalmente, perdi todo o desejo de lutar. Enfim, para concluir, admito quase (talvez o admita completamente) que tal era com efeito o estado normal do meu espírito. Mas, antes, no começo, quantos sofrimentos suportei pacientemente nessa luta! Não acreditava que outros pudessem estar no mesmo caso, e durante toda a minha vida escondi esta particularidade como um segredo. Eu tinha vergonha (pode ser que tenha vergonha ainda hoje). Isto ia tio longe que me acontecia gozar uma espécie de prazer secreto, vil, anormal, ao entrar em casa, no meu buraco, por uma dessas noites petersburguesas sujas e feias, e repetindo‑me que tinha ainda cometido uma vilania, nesse dia, e que era impossível reaparecer lá em cima. E inquietava‑me então interiormente. Eu me atormentava, despedaçava‑me, bebia longamente a minha amar­gura, fartava‑me tanto, que finalmente sentia uma espécie de fra­queza vergonhosa, maldita, onde gozava uma volúpia real. Sim, uma volúpia! Uma volúpia! Insisto nisso. Comecei a falar disto, precisamente porque eu quero saber com justeza se os outros co­nhecem tais volúpias.
Explicar‑vos‑ei: a volúpia, neste caso, provinha de que eu me inteirava demais da minha humilhação; ela unia‑se à sensação de ter atingido um último limite: tua situação é abominável, mas não pode ser outra; não te resta nenhuma salda; nunca poderás mudar, porque, mesmo que tivesses o tempo e a fé necessários, tu mesmo não quererias tomar‑te um homem diferente; e, aliás, ainda que quisesses mudar, serias incapaz: com efeito, mudar em quê? ‑Não há talvez nada além disso!
Mas o essencial ‑ e isto é o fim dos fins ‑ é que tudo se cumpre conforme as leis fundamentais e normais da consciência requintada e dela flui diretamente, embora seja completamente impossível não somente mudar, mas em geral, reagir, de um modo qualquer. A consciência requintada nos diz, por exemplo: “sim, tens razão, tu és um canalha”; mas o fato de eu poder verificar a minha própria canalhice, não me consola de jeito nenhum de ser um canalha. Mas isto chega!… Quantas palavras, meu Deus. Mas que explicaste? De onde provém essa volúpia? Pro­curo explicar‑me entretanto. Irei até o fim. Foi para isto que tornei a pena…
Assim, por exemplo, tenho um amor‑próprio terrível; sou tão desconfiado e suscetível como um corcunda, ou um anão. Mas, verdadeiramente, houve minutos da minha existência em que, se me tivessem dado uma bofetada, eu teria sido muito feliz, talvez. Falo seriamente: teria podido certamente encontrar aí algum prazer, o prazer do desespero, evidentemente; é o desespero que encobre as volúpias mais ardentes, sobretudo quando a situação parece real­mente sem saída. Ora, aí, no caso da bofetada, quanto aniquila­mento esta sensação de ter sido esmagado assim!
Mas o principal é que sempre acontece que sou eu o culpado, de qualquer lado que se examinem as coisas, e, o que é mais, culpado sem afinal o ser, ou dito por outra forma: de conformi­dade com as leis da natureza. Sou culpado, em primeiro lugar porque sou mais inteligente do que todos aqueles que me rodeiam (julguei‑me sempre mais inteligente do que aqueles que me cercam, e acontece‑me até ‑ imaginai! ‑ sentir‑me confuso com a mi­nha superioridade, de tal modo que durante a minha vida tenho olhado as pessoas de esguelha, por assim dizer, e nunca pude enca­rá‑las bem de frente). Sou culpado, além disso, porque mesmo que eu tivesse tido um sentimento qualquer de generosidade, a consciência de sua inutilidade não teria servido senão para me atormentar ainda mais. Eu não teria podido certamente tirar nada daí: não teria podido perdoar, pois o ofensor teria me atacado conforme as leis da natureza, as quais não fazem caso do nosso perdão; mas impossível, por outro lado, esquecer, pois o insulto, por mais natural que seja, nem por isso permanece menos. Enfim, mesmo que eu renunciasse a ser generoso e quisesse, ao contrário, vingar‑me do ofensor, não poderia fazê‑lo, porque me era impos­sível decidir‑me a agir, mesmo que tivesse esse direito.
E afinal, por quê? É a esse respeito que eu queria dizer‑vos algumas palavras.
III
Como as coisas se passam entre aqueles que são capazes de se vingarem e, em geral, de se defenderem?
Quando o desejo de vingança se apodera de seu espírito, não há lugar neles senão para esse desejo. Precipitam‑se para a frente sem se desviarem, cornos abaixados, como touros furiosos, e não se detêm na carreira senão quando se encontram diante de um muro. A propósito, diante de um muro, esses senhores, isto é, as pessoas simples e espontâneas, os homens de ação, se apagam e cedem com toda a sinceridade. Para eles esse muro não é de maneira alguma o que é para nós outros, os que pensamos, e, por conseqüência, não agimos: quer dizer, uma escusa; não é de modo algum, a seus olhos, um pretexto cômodo para arrepiar caminho, pretexto no qual nós outros não
VII
Mas não são senão sonhos de ouro!
Oh! dizei‑me qual foi aquele que primeiro declarou, que proclamou primeiro que o homem não comete vilanias senão porque não se apercebe de seus próprios interesses, e que se fosse escla­recido, se lhe abrissem os olhos sobre seus verdadeiros interesses, sobre seus interesses normais, cessaria imediatamente de cometer vilanias, e se tornaria no mesmo instante bom e honesto, pois, esclarecido pela ciência e compreendendo seus verdadeiros interesses; encontraria no bem sua própria vantagem? Como está entendido que ninguém pode agir conscientemente contra seu próprio interesse, o homem seria então por assim dizer colocado na necessidade de fazer o bem. Oh! criança! criança pura e ingênua!
Mas dar‑se-á que o homem, no curso desses milhares de anos, não agiu senão segundo o seu interesse? Que faremos então desses milhões de fatos que atestam que os homens, tendo embora perfeita consciência do seu interesse, o relegam a segundo plano e enveredam por um caminho totalmente diferente, cheio de riscos e de acasos? Não são, entretanto, forçados a isso; mas parece que querem precisamente evitar a estrada que se lhes indicava, para traçar livremente, caprichosamente, uma outra, cheia de difi­culdades, absurda, mal reconhecível, obscura. Ê que essa liberdade possui a seus olhos mais atrativos que seus próprios interesses … O interesse! Que é o interesse? Vós vos empenhais em me de­finir com toda a exatidão em que consiste o interesse do homem? Que direis vós se um belo dia se vem a descobrir que o interesse humano em certos casos pode ou mesmo deve consistir em desejar, não uma vantagem, mas um mal? Se é assim, se esse caso se pode apresentar, então tudo desmorona. Que pensais disto? Tal caso pode se apresentar?
Vós rides! Ride, senhores, mas respondei! Os interesses hu­manos estão enumerados com exatidão? Será que não existem alguns que não entram em nenhuma das vossas classificações e não podem aí encontrar lugar? Com efeito, tanto quanto sei, senhores, orga­nizastes vosso registro dos interesses humanos de acordo com as cifras médias das estatísticas e das fórmulas econômico‑científicas. Os interesses humanos são, pois, segundo vós, a riqueza, a tran­qüilidade, a liberdade, e assim por diante; de maneira que, o ho­mem que repelisse consciente e ostensivamente o vosso registro, deveria ser considerado, na vossa opinião, e, aliás, também na minha, como um obscurantista, um louco? Não é assim? Mas eis o que é bem estranho: como é possível que todos esses esta­tísticos, esses sábios, esses filantropos, deixem constantemente de lado um certo elemento, nos seus cálculos de interesses humanos? Eles não querem mesmo levá‑los em conta nas suas fórmulas, cujos resultados assim falseiam. A coisa não seria difícil, entretanto; por que não completar a lista e introduzir‑lhe o elemento em ques­tão ?… Mas a dificuldade provém de que esse elemento tão par­ticular não pode encontrar lugar em nenhuma classificação e não pode se inscrever em nenhuma lista. Eis um exemplo: eu tenho um amigo… Mas fico pensando nisso! Vós o conheceis também; ele é o amigo de todo o mundo.
Quando se prepara para agir, esse senhor começa por explicar­‑vos muito claramente, com belas e grandes frases, como lhe é preciso agir para se conformar à razão e à verdade. É pouco dizer: ele discutirá com paixão, com entusiasmo, interesses reais e normais da Humanidade; escarnecerá cegamente dos tolos que não compreendem nem seus verdadeiros interesses, nem o verdadeiro valor da virtude. Mas, um quarto de hora depois, nem mais cedo nem mais tarde, sem razão nenhuma, sob um impulso inte­rior mais poderoso que todas as considerações do interesse, ele fará uma coisa ridícula, uma tolice qualquer, e agirá então contra todos os preceitos que tinha citado, contra a razão, contra os seus interesses, contra tudo…
Previno‑vos, de resto, que meu amigo é uma personalidade coletiva e que é difícil, por conseqüência, condená‑lo sozinho. É precisamente a isto que quero chegar, senhores! Não há uma coisa, com efeito, que nos seja a todos mais cara que os nossos interesses mais preciosos? Por outras palavras (para não violar a lógica): não existe para nós um interesse (aquele que se deixa de lado, aquele de que acabamos de falar) mais interessante que todos os outros interesses, mais precioso que todos eles, e pelo qual o homem está pronto, se for preciso, a agir contra todas as regras, isto é, contra a razão, sacrificando‑lhe sua honra, sua paz, sua felicidade, todas as coisas belas e vantajosas, em uma palavra, nada senão para atingir uma coisa única que lhe é mais cara que todas as outras, que constitui a seus olhos seu interesse supremo?
‑ Sim, ‑ direis, ‑ mas é ainda de interesse que se trata… – Permiti! Vamos nos explicar; não é com jogos de palavras que se pode esclarecer a questão. O que faz a singularidade dessa coisa, desse interesse, é que ele destrói todas as nossas classificações e altera todos os sistemas edificados pelos amigos do gênero humano para a felicidade do homem. Em uma palavra, é um embaraço, um obstáculo. Mas antes de vos apontar essa coisa, quero me comprometer pessoalmente, e afirmo então com altivez que todos esses belos sistemas, que todas essas teorias que pretendem explicar à Humanidade em que consistem seus interesses normais, a fim de que ela se torne logo virtuosa e nobre no seu esforço para atin­gir os ditos interesses, declaro que tudo isso não passa de logísti­ca. Sim, pura logística! Crer que a renovação do gênero humano possa ‑realizar‑se fazendo‑lhe conhecer seus verdadeiros interesses, eqüivale, no meu modo de pensar, a admitir com Buckle que a civilização suaviza o homem, que se torna cada vez menos sanguinário, menos guerreiro. Buckle chegou a esse resultado muito logicamente, creio. Mas o homem nutre tal paixão pelos sistemas, pelas deduções abstratas, que está pronto * desfigurar conscientemente a verdade, pronto a fechar os olhos * tapar os ouvidos diante da verdade, tudo para justificar sua. lógica.
Tomo este exemplo porque é convincente. Olhai pois em torno de vós! O sangue corre em borbotões, alegremente mesmo, como champanha. Vêde nosso século XIX, no qual viveu Buckle! Vede Napoleão, o outro, o grande, e o de hoje! Vede a América do Norte e sua união, estabelecida para a eternidade! Vede enfim esse caricatural Schleswig‑Holstein. Então em que é que a civilização nos adoça? A civilização não faz mais que desenvolver em nós a diversidade das sensações… nada mais. E graças ao desenvolvimento dessa diversidade, é muito possível que o homem acabe por descobrir uma certa volúpia no sangue. Isto aliás já aconteceu.
Notastes já que os sanguinários mais refinados foram sempre senhores muito civilizados, junto dos quais todos esses Átila, todos esses Stenka Razine fariam uma figura bem mesquinha. Se esses senhores se fazem notar menos, é que se encontram mais freqüentemente e estamos habituados com isso. Mas se a civiliza­ção não tornou o homem mais sanguinário, tornou‑o sem dúvida mais sordidamente, mais covardemente sanguinário. Antigamente, o homem considerava que tinha o direito de derramar sangue, e era com a consciência bem tranqüila que destruía o que bem lhe parecia. Hoje, embora considerando a efusão de sangue uma ação condenável, nem por isso deixamos de matar, e mais freqüentemente ainda do que antes. Isto vale mais? Decidi vós mesmos. Diz‑se que Cleópatra (desculpai este exemplo tirado da História Romana) divertia‑se em espetar agulhas no seio das escravas e experimentava grande prazer com seus gritos e contorções. Dir‑me‑eis que isso se passava numa época relativamente bárbara, que nosso século é bárbaro também, pois continuam a espetar agulhas na carne, que o homem, se bem que tenha adquirido uma compreensão mais clara das coisas que naqueles recuados tempos,, não pôde ainda se habituar à seguir as normas da razão e da ciência. Mas estais certos, não obstante, que ele se habituará quando se desfizer com­pletamente de certas tendências ruins, e quando o senso comum e a ciência tiverem completamente reeducado a natureza humana, e a tiverem orientado para um caminho normal, Estais certos de quê então o homem deixará de se enganar deliberadamente e se verá por assim dizer na impossibilidade de querer opor sua vontade aos seus interesses normais.
Mas há mais ainda: então, dizeis, a ciência ensinará ao homem (mas na minha opinião, isto já é um luxo supérfluo) que ele nunca teve vontade, nem caprichos, e que não passa, em suma, de uma tecla de piano, de um pedal de órgão; o que realiza, por conse­guinte, realiza‑o, não segundo sua vontade, mas conforme às leis da natureza. Basta pois descobrir essas leis, e o homem então não poderá mais ser considerado responsável por suas ações, e a vida se lhe tornará extremamente fácil. Todas as ações humanas poderio ser evidentemente calculadas matematicamente, de acordo com essas leis, como se faz para os logaritmos, até q centésimo milésimo, e serão inscritas nas efemérides, ou far‑se‑ão livros esti­máveis no gênero dos nossos dicionários enciclopédicos, onde tudo ficará tão bem calculado e previsto, que não haverá mais aventuras, nem mesmo mais ações.
Então, e sois vós quem continua a falar, ver‑se‑á estabelecerem­‑se novas relações econômicas, que serão, por sua vez, fixadas com precisão matemática, que todas as dúvidas desaparecerão logo, pela simples razão de que se terão descoberto todas as soluções. Então se edificará um vasto palácio de cristal. Então veremos o Pássaro de Fogo, então… Não se pode certamente garantir (sou eu que falo agora) que não será terrivelmente fastidioso (que fazer, com efeito, se tudo está calculado e fixado de antemão?); em compensação, serão todos muito sábios. Evidentemente o tédio pode ser mau conselheiro: é o tédio que nos faz enterrar agulhas de ouro na carne… Mas isto não é nada ainda. O que é mais grave (sou eu quem continua a falar) é que talvez nos acharemos então muito felizes de ter à mão agulhas de ouro: o homem é bruto, terrivelmente bruto, ou melhor dizendo, não é tão bruto quanto ingrato, e é difícil encontrar quem seja mais ingrato que ele. Eu não ficaria pois admirado se, no meio dessa felicidade, se levantasse de súbito um cavalheiro despojado de elegância, com o rosto “re­trógrado” e escarninho, e que nos dissesse, pondo as mãos na cintura: “Pois bem, senhores! Se jogássemos por terra, de um só pontapé, toda essa felicidade tranqüila, nada mais que para mandar os logaritmos ao diabo e poder recomeçar a viver segundo a nossa tola fantasia?” Isso não seria ainda nada; mas o mais terrível é que esse personagem encontraria certamente discípulos. O homem é feito assim. E tudo isso por causa de uma coisa ínfima que se poderia desprezar completamente, parece: tudo isso porque todo e qualquer homem aspira, sempre e em todas às si­tuações, a agir segundo sua vontade e não de acordo com as pres­crições da razão e do interesse; ora, vossa vontade pode e deve mesmo, por vezes (esta idéia me pertence, como propriedade par­ticular), se opor aos vossos interesses. Minha vontade livre, meu arbítrio, meu capricho, por estapafúrdio que seja, minha fantasia sobreexcitada até a demência, eis precisamente a coisa que se põe de lado, o interesse mais precioso que não pode encontrar lugar em nenhuma de vossas classificações, e que quebra em mil pedaços todos os sistemas, todas as teorias.
Onde, pois, aprenderam os nossos sábios que o homem tem necessidade de não sei que vontade normal e virtuosa? Por que imaginaram eles que o homem tem aspirações após uma certa von­tade racional e útil? O homem não aspira senão depois de uma vontade independente, qualquer que seja o preço e sejam quais forem os resultados. Mas só o diabo sabe o que essa vontade vale…
Acreditamos geralmente, mas do qual nos aproveitamos com alegria. Não, eles, eles cedem de todo o coração. O muro é a seus olhos um apaziguamento; ofe­rece‑lhes uma solução moral, definitiva, direi talvez mesmo mística. Mas tomaremos a falar ainda desse muro.
Pois bem, é precisamente esse homem simples e espontâneo que considero como o homem normal por excelência, no qual pen­sava nossa terna mãe Natureza quando nos fazia amavelmente nascer sobre a terra. Invejo esse homem. Não nego: ele é estú­pido. Mas que sabeis a esse respeito? É possível que o homem normal deva ser burro. E possível mesmo que isto seja muito belo. E esta suposição me parece tanto mais justificada quanto, se tomarmos a antítese do homem normal, isto é, o homem com a consciência refinada, o homem saído não do seio da natureza, mas de um alambique (é quase misticismo, senhores; mas estou incli­nado também a essa suspeita), vê‑se que esse homem alambicado se apaga por vezes a tal ponto diante da sua antítese e lhe cede, que, malgrado todo o refinamento da sua consciência, acontece‑lhe não mais se considerar senão tão pequeno como um rato. Será talvez um rato extremamente clarividente, mas nem por isso é me­nos um rato, e não um homem, enquanto que o outro é bem um homem; em conseqüência…, etc., etc. Mas o pior é que ele se considera a si mesmo como um ratinho, ele mesmo! Ninguém, com efeito, exige dele essa confissão. E isto é muito importante.
Vejamos então um pouco esse ratinho em ação. Ele também foi ofendido, por exemplo (Se se sente quase continuamente ofen­dido), e pretende se vingar. É possível que acumule em si mais raiva ainda que o homem da natureza e da verdade. O desejo desprezível e mesquinho de pagar ao seu ofensor o mal com o mal o domina, talvez ainda mais violentamente do que domina o homem da natureza e da verdade, porque este, em sua rudeza natural, considera sua vingança como urna ação perfeitamente justa, enquanto que o ratinho não lhe pode admitir a justiça, por causa de sua consciência mais clarividente. Mas eis‑nos enfim chegados ao ato mesmo, à vingança. Em acréscimo à vilania inicial, o desgraçado ratinho conseguiu acumular em torno de si, sob a forma de dúvidas e hesitações, tantas outras vilanias, à primeira indaga­ção ajuntou tantas outras, completamente insolúveis, que, por mais que faça, criou em torno de si um atoleiro fatal, um lodaçal fedo­rento, um charco de lama, formado de suas hesitações, de suas suspeitas, de sua agitação, de todos os escarros que fazem chover sobre ele os homens de ação que o cercam, o julgam, o aconselham e dele riem a bandeiras despregadas.
Não lhe resta então mais nada a fazer, evidentemente, que abandonar tudo, simulando desprezo, e desaparecer vergonhosamen­te no seu buraco. E lá, num sujo e lamacento subterrâneo, nosso ratinho, insultado, batido e escarnecido, lentamente mergulha na sua raiva fria, envenenada e sobretudo inesgotável. Durante qua­renta anos êle se lembrará do insulto sofrido, em todos os seus pormenores mais vergonhosos, e acrescentando‑lhe de cada vez outros mais vergonhosos ainda, excitando‑se malvadamente, atiçando‑lhe a imaginação. Ele próprio terá vergonha, mas evocará todas as minúcias, passará em revista uma a uma todas as circunstâncias, inventará mesmo outras, sob o pretexto de que elas teriam podido acontecer, e não perdoará nada.
Talvez mesmo tente se vingar, mas em segredo, em pequenas doses, incógnito, sem nenhuma confiança nem em seu direito nem no sucesso da sua vingança, e sabendo muito bem que suas tenta­tivas de vingança o farão sofrer muito mais a ele mesmo do que àquele contra o qual são dirigidas, e que nem sequer provavelmente as notará. No seu leito de morte, ele se recordará de novo e aí reunirá os proveitos acumulados, e então… Mas é precisa­mente essa mistura abominável e gelada de desespero e de esperança, é precisamente esse sepultamento voluntário, e esta existência de emparedado vivo, esta ausência, claramente percebida, mas sempre duvidosa, de toda solução, é esse vínculo de desejos insatisfeitos e enfurnados, de decisões febris tomadas para a eternidade mas imediatamente seguidas de remorsos, é isso precisamente o que se­grega esta volúpia estranha de que falava antes. Ela é tão sutil, às vezes, escapa a tal ponto à consciência, que as pessoas um tanto medíocres ‑ ou mesmo aqueles que têm simplesmente os nervos sólidos ‑ nada percebem. “Tampouco compreenderão, ajuntareis talvez zombeteiramente, aqueles que nunca foram estapeados.” E vós me fareis polidamente entender assim que recebi uma bofetada e que falo com conhecimento de causa. Aposto que o pensastes. Mas tranqüilizai‑vos, senhores, não fui esbofeteado, e de resto, o que possais pensar a esse respeito me é completamente indiferente. Talvez seja eu quem lamente ter distribuído pouquíssimos bofetões em minha existência. Mas basta! nem mais uma palavra sobre esse assunto, por mais interessante que seja para vós!
Continuo então tranqüilamente a respeito das pessoas de nervos sólidos que não saboreiam certas volúpias sutis. Se bem que esses senhores dêem mugidos como touros em certos casos, se bem que isso seja muito honroso para eles, entretanto, como eu disse, diante do impossível eles cedem, apagam‑se. Impossibilidade! portanto, muralha de pedra. Mas que muralha é essa? São as leis naturais evidentemente, os resultados das ciências exatas, as matemáticas. Se vos demonstram, por exemplo, que descendeis do macaco, inútil fazer cara feia! deveis aceitá‑lo. Se vos provam que uma só gota de vossa própria gordura vos deve ser mais cara que cem mil dos vossos semelhantes, e que é por isso que desabrocham todas as virtudes, todas as obrigações e outras fantasias e preconceitos, não há nada a fazer, deveis aceitá‑lo, porque duas vezes dois são quatro; é da força das matemáticas. Tentai um pouco discutir!
“Perdão! exclamarão, vós não podeis protestar: duas vezes dois são quatro. A natureza não se importa com as vossas pre­tensões; ela não se preocupa com os vossos desejos e se suas leis não vos convêm, pouco se lhe dá. Sois obrigado a aceitá‑la tal como é, assim como todas as conseqüências. Um muro é um muro…”, etc., etc. Mas que me importam, meu Deus! as leis da natureza e a aritmética, se, por uma razão ou por outra, essas leis e este “duas vezes dois quatro” não me agradam? Não po­derei evidentemente quebrar esse muro com a cabeça, se minhas forças não são suficientes; mas recuso‑me a me humilhar diante desse obstáculo, pela única razão de que é um muro de pedra e que minhas forças são insuficientes!
Como se esse muro pudesse me trazer um apaziguamento qual­quer, como se alguém se pudesse reconciliar com o impossível pela única razão de ter sido estabelecido “dois e dois serem quatro”. Oh! o mais absurdo de todos os absurdos!
Quanto é mais penoso compreender tudo, tomar consciência de todas as impossibilidades, de todos os muros de pedra; porém não se humilhar diante de nenhuma dessas impossibilidades, diante de nenhuma dessas muralhas se isso te repugna, chegar, seguindo as deduções lógicas mais inelutáveis, às conclusões mais desespera­doras, no tocante a esse tema eterno de tua parte de responsabili­dade nessa muralha de pedra, se bem que esteja claro até a evidência que tu não estás aqui para nada, e em conseqüência, mergulhares silenciosamente, mas rangendo deliciosamente os dentes, na tua inér­cia, pensando que não podes mesmo te revoltar contra seja o que for, porque não há ninguém em suma, porque isto não é ~ uma farsa, senão urna falcatrua, porque é uma trapalhada, não se sabe o quê nem se sabe quem, porém que, malgrado todas estas velhacadas, malgrado esta ignorância, tu sofres, e tanto mais quanto menos compreendes.
IV
“Ah! Ah! Ah! Se é assim, você chegará a descobrir uma certa volúpia até na dor de dentes!”, exclamais vós, rindo.
- Mas, sim, responderei; há uma volúpia na dor de dentes: tive dor de dentes um mês inteiro; sei o que digo. Não se sofre em silêncio, neste caso; geme‑se. Mas a esses gemidos falta fran­queza; há neles certa malignidade, e tudo está ali, precisamente. Esses gemidos exprimem a volúpia daquele que sofre; se a doença não lhe trouxesse um certo prazer, ele cessaria de se ‘queixar. É um exemplo excelente, senhores, e vou desenvolvê‑lo.
Esses gemidos exprimem, primeiramente; a consciência tão hu­milhante da perfeita inutilidade de vosso sofrimento, sua legali­dade do ponto de vista da natureza, sobre a qual escarrais, evidente­mente, mas que vos faz sofrer, permanecendo perfeitamente impassível. Significam também ‑ que vós compreendeis que o inimigo não existe, mas que a dor está lá, mesmo assim, e que, com todos os vossos Wagenheim, sois o escravo de vossos dentes: quando calhar, vossos dentes cessarão de doer; mas se foi decidido de outra maneira, eles vos farão ainda sofrer durante três meses. E, se vós recusais a vos submeter e protestais apesar de tudo, não vos resta outro meio de vos consolardes senão o de vos esbofeteardes e de quebrardes os punhos contra a parede. Pois bem! são preci­samente essas ofensas sangrentas, essas chalaças, que se permite não se sabe quem, são elas que suscitam esta sensação de prazer, a qual atinge por vezes a suprema volúpia.
Eu vos suplico, senhores, prestai atenção uma vez aos gemidos de um homem culto do século XIX que sofre dos dentes há dois ou três dias, quando ele se põe a gemer de modo diferente do primeiro dia, isto é, não unicamente porque tem uma dor, não como um grosseiro camponês, mas como um ser instruído que se pôs em contato com a civilização européia, como um homem “des­ligado do solo natal e dos princípios nacionais”, como se diz hoje em dia. Seus gemidos se fazem maus, raivosos e não cessam mais, nem de dia nem de noite. Ele próprio sente muito bem, entretanto, que não lhe são de nenhuma utilidade. Melhor que ninguém, sabe que irrita os que o rodeiam e os tortura, e se tortura a si mesmo, sem proveito nenhum. Sabe que o público e a família, diante da qual se debate, não experimentam mais que desgosto com suas queixas, não mais acreditam nelas, e compreendem que poderia gemer de outra maneira, mais simplesmente, sem todos esses trinados, sem todas essas atitudes, e que ele exagera por malícia e por malvadez… Pois bem! aí está! 9 justamente nessa humi­lhação claramente vista que jaz a volúpia. “Ah! eu vos desoriento, dilacero‑vos o coração, impeço de dormir toda a casa! Pois bem! Tanto melhor! Não durmais então! Convencei‑vos de que tenho dor de dentes! Não sou mais para vós esse herói que pretendia ser; não passo de um pobre poltrão, de um patife! Tanto me­lhor! Estou feliz, mesmo que me tenhais adivinhado enfim! Meus miseráveis gemidos vos são penosos de ouvir? Tanto pior! Eu vos lançarei numa roda‑viva mais bela ainda!. . .
Continuais a não compreender, senhores? ‑ Sim, para poder apanhar todas as nuanças dessa volúpia sensual, é preciso que vossa consciência atinja uma grande profundidade. Rides? Sou muito feliz. Minhas brincadeiras, senhores, são de muito mau gosto, cer­tamente; são embrulhadas e soam falso. Tudo isto provém de que eu não me respeito: mas aquele que se conhece pode se estimar, por pouco que seja?
V
É possível verdadeiramente sentir ainda algum respeito por si mesmo, aquele que se dedicou a descobrir uma certa volúpia. na consciência da sua própria humilhação? Isto que digo não é e modo algum ditado por insípido remorso. E em geral, detesto dizer: ‑Perdoe‑me, papai, não o farei nunca mais!” Não porque seja incapaz de pronunciar estas palavras, mas talvez muito ao contrário, porque sou capaz demais!
E como um fato expresso, eu me precipitava para a frente precisamente quando não estava absolutamente para nada no ne­gócio. Era o que havia de mais repugnante. E com isto eu me enternecia, confessava‑me, chorava e, por fim, naturalmente, enga­nava‑me a mim mesmo, não dissimulando, entretanto: era meu co­ração quem me pregava estas partidas de mau gosto.
Neste caso nem sequer nos podíamos queixar das leis da na­tureza, embora essas leis me tivessem feito sofrer numerosos ve­xames no curso da minha existência. É penoso recordar tudo isto, e, de resto, naquele momento era muito penoso também. Com efeito, um minuto mais, e convenço‑me raivosamente de que tudo isto não é senão mentira, mentira ignóbil, infame comédia ‑ esta contrição, este enternecimento, estes juramentos de vida nova! Vós me perguntareis porque me torturava, porque me des­locava assim? Resposta: porque me aborrecia demais permanecer de braços cruzados; eis aí porque me entreguei a essas contorções. Era assim, asseguro. Observai bem, senhores, e verificareis então que as coisas se passam precisamente assim. Eu imaginava aven­turas e criava para mim uma existência fantástica para viver de um modo ou de outro. Quantas vezes, por exemplo, cheguei a me ofender, por motivos absurdos, de propósito: sabes bem, tu mesmo, que não há por que se zangar, e que te excitas a frio, mas te aqueces a tal ponto que chegas finalmente a te encolerizar sinceramente.
Tive sempre o gosto por estas histórias. Tanto e tão bem que finalmente perdi todo poder sobre mim mesmo. Uma vez, duas vezes mesmo, quis me forçar a me apaixonar. Sofri mesmo, se­nhores, garanto. Não se acredita nesse sofrimento, no fundo da alma, ri‑se dele, quase, mas sofre‑se verdadeiramente, de maneira muito real; fica‑se com ciúme, fora de si … E a causa de tudo isto, é o tédio, meus senhores; a inércia nos esmaga. O fruto le­gítimo, o fruto natural da consciência é com efeito a inércia: cru­zam‑se os braços com conhecimento de causa. já falei disso. Digo e repito com insistência: todos os homens simples e sinceros, todos os homens ativos, são ativos justamente porque são obtusos e me­díocres.
Como explicar isto? Eis aqui: por causa de sua estreiteza de espírito, eles tomam as causas secundárias, imediatas, pelas causas primeiras; e bem mais facilmente, bem mais rapidamente que os outros, imaginam ter encontrado razões sólidas, fundamentais, para sua atividade. Então eles se tranqüilizam; ora, isto é o principal. Para poder agir, com efeito, é preciso previamente atingir uma perfeita tranqüilidade e não mais conservar nenhuma dúvida. Mas como alcançar essa tranqüilidade de espírito? Onde poderia eu encontrar os princípios fundamentais sobre os quais possa construir? Onde está minha base? onde iria procurá‑la?
Excito‑me pensando. Por outras palavras, toda a causa em mim arrasta imediatamente uma outra após ela, ainda mais pro­funda, mais fundamental, e assim em seguida, até o infinito. Tal é a essência de todo o pensamento, de toda a consciência. Encon­tramo‑nos então diante das leis da natureza. E o resultado? É sempre o mesmo, lembrai‑vos! Falei‑vos antes em vingança (cer­tamente não penetrastes muito bem a coisa). Diz‑se: o homem se vinga porque considera que isso é justo. Encontra então o princípio fundamental que procurava: é a justiça. Sente‑se então completamente apaziguado e vinga‑se com toda a tranqüilidade e com pleno sucesso, estando persuadido que cumpre uma ação justa e honesta. Ora, quanto a mim, eu não vejo nisso nada de justo nem de bom; e, se, por conseguinte, tento me vingar, é pura malvadez da minha parte. A raiva poderia evidentemente vencer todas as hesitações e seria então capaz de desempenhar com sucesso o papel dessa razão fundamental, precisamente porque ela não pode ser considerada como tal. Mas que fazer, se não sou sufi­cientemente malvado? (Indiquei‑o desde o começo.)
Minha raiva é submetida a uma espécie de decomposição quí­mica, em virtude justamente dessas mesmas malditas leis da cons­ciência. Mal distingui o objeto do meu ódio, ei‑lo que se desva­nece, os motivos se dissipam, o responsável desapareceu, o insulto não é mais insulto, mas um golpe do destino, alguma coisa como uma dor de dentes, de que ninguém é culpado. E não me resta mais então outro consolo que quebrar meus punhos contra a parede. Na impossibilidade de encontrar as causas primeiras, re­nuncio então à minha vingança com um desdém afetado. Ah! se a gente tentasse abandonar‑se a seu sentimento, cegamente, sem reflexão alguma, sem procurar nenhuma razão, afastando para bem longe de si toda a consciência, nem que fosse por algum tempo Seria então uma coisa muito diferente! Maldize ou adora, mas não permaneças de braços cruzados. A partir do depois de ama­nhã ‑ último adiamento ‑ tu te desprezarás de ter conscientemente te enganado a ti mesmo. Resultado final: bolha de sabão, inércia.
Ah! senhores! é possível que eu me considere extremamente inteligente pela única razão de que, em toda a minha vida, nunca pude começar nem acabar fosse o que fosse. Não passo pois de um tagarela, de um tagarela inofensivo, de um impertinente como nós todos. Mas que fazer, senhores, se o destino de todo homem inteligente é tagarelar, isto é, derramar água numa peneira! VI
Oh! se eu não tivesse passado de um preguiçoso! como eu me teria respeitado a mim mesmo! Ter‑me‑ia respeitado precisamen­te porque me teria visto capaz ao menos de preguiça, porque teria possuído então ao menos uma qualidade definida, da qual estaria certo. Pergunta: Quem és? Resposta: um preguiçoso! Teria sido verdadeiramente muito agradável ouvir chamar‑se assim. Tu estás então definido de maneira positiva; há alguma coisa então a dizer da tua pessoa. .. “Um preguiçoso!” ‑ É um título, é uma função, é uma carreira, meus senhores! Não riais disto; é assim. Teria sido, assim, por direito, membro do primeiro clube do universo e teria passado todo o meu tempo a me respeitar. Conheci um sujei­to cujo orgulho era ser entendido em Laffitte. Considerava essa qualidade como uma virtude muito preciosa e não duvidou jamais dele. Morreu com a consciência não somente tranqüila, mas triunfante mesmo, e teve razão. Eu teria nesse caso escolhido uma carreira: teria sido um preguiçoso e um glutão; não um guloso vulgar, mas um gozador, interessando‑se por “tudo que é belo e sublime”. Que pensais? Há muito tempo sonho isso. “O belo e o sublime” pesam como chumbo sobre a minha nuca desde que fiz quarenta anos. Desde que tenho quarenta anos! Mas antes? teria sido muito diferente! Teria logo encontrado uma forma de atividade adaptada ao meu caráter: por exemplo, beber à saúde de todas as coisas “belas e sublimes”. Teria agarrado cada ocasião de beber à glória “do belo e do sublime”, depois de ter, previamente, deixado cair uma lágrima na minha taça. Eu teria então tor­nado todas as coisas “belas e sublimes”; teria descoberto “o belo e o sublime”, até nas torpezas mais incontestáveis; teria derramado prantos tio abundantes, como aqueles que deixa escapar uma espon­ja. Um pintor, por exemplo, compôs um quadro digno de Ghê, logo eu bebo à saúde desse pintor, porque amo tudo que é “belo e sublime”. Um poeta escreveu Como Agradar a Cada Um , e eu bebo depressa à saúde de cada um, ‑ porque amo “o belo e o sublime”. Isto me valerá o respeito geral; exigirei esse respeito; perseguirei com a minha cólera aquele que mo recusar. Vivo pacificamente, morro solenemente. Não é admirável? Não é esquisito? Teria deixado crescer um ventre tão opulento, teria erguido para o alto um nariz tão gorduroso, teria ornado meu rosto com um queixo tão vasto, que todos ao me verem teriam exclamado: “Eis aí um ser bem real, um ser positivo!” Como quiserdes, mas é bem agradável ouvir dizer tais coisas a seu respei­to em nosso século, tão essencialmente negativo.
VII
Mas não são senão sonhos de ouro!
Oh! dizei‑me qual foi aquele que primeiro declarou, que proclamou primeiro que o homem não comete vilanias senão porque não se apercebe de seus próprios interesses, e que se fosse escla­recido, se lhe abrissem os olhos sobre seus verdadeiros interesses, sobre seus interesses normais, cessaria imediatamente de cometer vilanias, e se tornaria no mesmo instante bom e honesto, pois, esclarecido pela ciência e compreendendo seus verdadeiros interesses; encontraria no bem sua própria vantagem? Como está entendido que ninguém pode agir conscientemente contra seu próprio interesse, o homem seria então por assim dizer colocado na necessidade de fazer o bem. Oh! criança! criança pura e ingênua!
Mas dar‑se-á que o homem, no curso desses milhares de anos, não agiu senão segundo o seu interesse? Que faremos então desses milhões de fatos que atestam que os homens, tendo embora perfeita consciência do seu interesse, o relegam a segundo plano e enveredam por um caminho totalmente diferente, cheio de riscos e de acasos? Não são, entretanto, forçados a isso; mas parece que querem precisamente evitar a estrada que se lhes indicava, para traçar livremente, caprichosamente, uma outra, cheia de difi­culdades, absurda, mal reconhecível, obscura. Ê que essa liberdade possui a seus olhos mais atrativos que seus próprios interesses … O interesse! Que é o interesse? Vós vos empenhais em me de­finir com toda a exatidão em que consiste o interesse do homem? Que direis vós se um belo dia se vem a descobrir que o interesse humano em certos casos pode ou mesmo deve consistir em desejar, não uma vantagem, mas um mal? Se é assim, se esse caso se pode apresentar, então tudo desmorona. Que pensais disto? Tal caso pode se apresentar?
Vós rides! Ride, senhores, mas respondei! Os interesses hu­manos estão enumerados com exatidão? Será que não existem alguns que não entram em nenhuma das vossas classificações e não podem aí encontrar lugar? Com efeito, tanto quanto sei, senhores, orga­nizastes vosso registro dos interesses humanos de acordo com as cifras médias das estatísticas e das fórmulas econômico‑científicas. Os interesses humanos são, pois, segundo vós, a riqueza, a tran­qüilidade, a liberdade, e assim por diante; de maneira que, o ho­mem que repelisse consciente e ostensivamente o vosso registro, deveria ser considerado, na vossa opinião, e, aliás, também na minha, como um obscurantista, um louco? Não é assim? Mas eis o que é bem estranho: como é possível que todos esses esta­tísticos, esses sábios, esses filantropos, deixem constantemente de lado um certo elemento, nos seus cálculos de interesses humanos? Eles não querem mesmo levá‑los em conta nas suas fórmulas, cujos resultados assim falseiam. A coisa não seria difícil, entretanto; por que não completar a lista e introduzir‑lhe o elemento em ques­tão ?… Mas a dificuldade provém de que esse elemento tão par­ticular não pode encontrar lugar em nenhuma classificação e não pode se inscrever em nenhuma lista. Eis um exemplo: eu tenho um amigo… Mas fico pensando nisso! Vós o conheceis também; ele é o amigo de todo o mundo.
Quando se prepara para agir, esse senhor começa por explicar­‑vos muito claramente, com belas e grandes frases, como lhe é preciso agir para se conformar à razão e à verdade. É pouco dizer: ele discutirá com paixão, com entusiasmo, interesses reais e normais da Humanidade; escarnecerá cegamente dos tolos que não compreendem nem seus verdadeiros interesses, nem o verdadeiro valor da virtude. Mas, um quarto de hora depois, nem mais cedo nem mais tarde, sem razão nenhuma, sob um impulso inte­rior mais poderoso que todas as considerações do interesse, ele fará uma coisa ridícula, uma tolice qualquer, e agirá então contra todos os preceitos que tinha citado, contra a razão, contra os seus interesses, contra tudo…
Previno‑vos, de resto, que meu amigo é uma personalidade coletiva e que é difícil, por conseqüência, condená‑lo sozinho. É precisamente a isto que quero chegar, senhores! Não há uma coisa, com efeito, que nos seja a todos mais cara que os nossos interesses mais preciosos? Por outras palavras (para não violar a lógica): não existe para nós um interesse (aquele que se deixa de lado, aquele de que acabamos de falar) mais interessante que todos os outros interesses, mais precioso que todos eles, e pelo qual o homem está pronto, se for preciso, a agir contra todas as regras, isto é, contra a razão, sacrificando‑lhe sua honra, sua paz, sua felicidade, todas as coisas belas e vantajosas, em uma palavra, nada senão para atingir uma coisa única que lhe é mais cara que todas as outras, que constitui a seus olhos seu interesse supremo?
‑ Sim, ‑ direis, ‑ mas é ainda de interesse que se trata… – Permiti! Vamos nos explicar; não é com jogos de palavras que se pode esclarecer a questão. O que faz a singularidade dessa coisa, desse interesse, é que ele destrói todas as nossas classificações e altera todos os sistemas edificados pelos amigos do gênero humano para a felicidade do homem. Em uma palavra, é um embaraço, um obstáculo. Mas antes de vos apontar essa coisa, quero me comprometer pessoalmente, e afirmo então com altivez que todos esses belos sistemas, que todas essas teorias que pretendem explicar à Humanidade em que consistem seus interesses normais, a fim de que ela se torne logo virtuosa e nobre no seu esforço para atin­gir os ditos interesses, declaro que tudo isso não passa de logísti­ca. Sim, pura logística! Crer que a renovação do gênero humano possa ‑realizar‑se fazendo‑lhe conhecer seus verdadeiros interesses, eqüivale, no meu modo de pensar, a admitir com Buckle que a civilização suaviza o homem, que se torna cada vez menos sanguinário, menos guerreiro. Buckle chegou a esse resultado muito logicamente, creio. Mas o homem nutre tal paixão pelos sistemas, pelas deduções abstratas, que está pronto * desfigurar conscientemente a verdade, pronto a fechar os olhos * tapar os ouvidos diante da verdade, tudo para justificar sua. lógica.
Tomo este exemplo porque é convincente. Olhai pois em torno de vós! O sangue corre em borbotões, alegremente mesmo, como champanha. Vêde nosso século XIX, no qual viveu Buckle! Vede Napoleão, o outro, o grande, e o de hoje! Vede a América do Norte e sua união, estabelecida para a eternidade! Vede enfim esse caricatural Schleswig‑Holstein. Então em que é que a civilização nos adoça? A civilização não faz mais que desenvolver em nós a diversidade das sensações… nada mais. E graças ao desenvolvimento dessa diversidade, é muito possível que o homem acabe por descobrir uma certa volúpia no sangue. Isto aliás já aconteceu.
Notastes já que os sanguinários mais refinados foram sempre senhores muito civilizados, junto dos quais todos esses Átila, todos esses Stenka Razine fariam uma figura bem mesquinha. Se esses senhores se fazem notar menos, é que se encontram mais freqüentemente e estamos habituados com isso. Mas se a civiliza­ção não tornou o homem mais sanguinário, tornou‑o sem dúvida mais sordidamente, mais covardemente sanguinário. Antigamente, o homem considerava que tinha o direito de derramar sangue, e era com a consciência bem tranqüila que destruía o que bem lhe parecia. Hoje, embora considerando a efusão de sangue uma ação condenável, nem por isso deixamos de matar, e mais freqüentemente ainda do que antes. Isto vale mais? Decidi vós mesmos. Diz‑se que Cleópatra (desculpai este exemplo tirado da História Romana) divertia‑se em espetar agulhas no seio das escravas e experimentava grande prazer com seus gritos e contorções. Dir‑me‑eis que isso se passava numa época relativamente bárbara, que nosso século é bárbaro também, pois continuam a espetar agulhas na carne, que o homem, se bem que tenha adquirido uma compreensão mais clara das coisas que naqueles recuados tempos,, não pôde ainda se habituar à seguir as normas da razão e da ciência. Mas estais certos, não obstante, que ele se habituará quando se desfizer com­pletamente de certas tendências ruins, e quando o senso comum e a ciência tiverem completamente reeducado a natureza humana, e a tiverem orientado para um caminho normal, Estais certos de quê então o homem deixará de se enganar deliberadamente e se verá por assim dizer na impossibilidade de querer opor sua vontade aos seus interesses normais.
Mas há mais ainda: então, dizeis, a ciência ensinará ao homem (mas na minha opinião, isto já é um luxo supérfluo) que ele nunca teve vontade, nem caprichos, e que não passa, em suma, de uma tecla de piano, de um pedal de órgão; o que realiza, por conse­guinte, realiza‑o, não segundo sua vontade, mas conforme às leis da natureza. Basta pois descobrir essas leis, e o homem então não poderá mais ser considerado responsável por suas ações, e a vida se lhe tornará extremamente fácil. Todas as ações humanas poderio ser evidentemente calculadas matematicamente, de acordo com essas leis, como se faz para os logaritmos, até q centésimo milésimo, e serão inscritas nas efemérides, ou far‑se‑ão livros esti­máveis no gênero dos nossos dicionários enciclopédicos, onde tudo ficará tão bem calculado e previsto, que não haverá mais aventuras, nem mesmo mais ações.
Então, e sois vós quem continua a falar, ver‑se‑á estabelecerem­‑se novas relações econômicas, que serão, por sua vez, fixadas com precisão matemática, que todas as dúvidas desaparecerão logo, pela simples razão de que se terão descoberto todas as soluções. Então se edificará um vasto palácio de cristal. Então veremos o Pássaro de Fogo, então… Não se pode certamente garantir (sou eu que falo agora) que não será terrivelmente fastidioso (que fazer, com efeito, se tudo está calculado e fixado de antemão?); em compensação, serão todos muito sábios. Evidentemente o tédio pode ser mau conselheiro: é o tédio que nos faz enterrar agulhas de ouro na carne… Mas isto não é nada ainda. O que é mais grave (sou eu quem continua a falar) é que talvez nos acharemos então muito felizes de ter à mão agulhas de ouro: o homem é bruto, terrivelmente bruto, ou melhor dizendo, não é tão bruto quanto ingrato, e é difícil encontrar quem seja mais ingrato que ele. Eu não ficaria pois admirado se, no meio dessa felicidade, se levantasse de súbito um cavalheiro despojado de elegância, com o rosto “re­trógrado” e escarninho, e que nos dissesse, pondo as mãos na cintura: “Pois bem, senhores! Se jogássemos por terra, de um só pontapé, toda essa felicidade tranqüila, nada mais que para mandar os logaritmos ao diabo e poder recomeçar a viver segundo a nossa tola fantasia?” Isso não seria ainda nada; mas o mais terrível é que esse personagem encontraria certamente discípulos. O homem é feito assim. E tudo isso por causa de uma coisa ínfima que se poderia desprezar completamente, parece: tudo isso porque todo e qualquer homem aspira, sempre e em todas às si­tuações, a agir segundo sua vontade e não de acordo com as pres­crições da razão e do interesse; ora, vossa vontade pode e deve mesmo, por vezes (esta idéia me pertence, como propriedade par­ticular), se opor aos vossos interesses. Minha vontade livre, meu arbítrio, meu capricho, por estapafúrdio que seja, minha fantasia sobreexcitada até a demência, eis precisamente a coisa que se põe de lado, o interesse mais precioso que não pode encontrar lugar em nenhuma de vossas classificações, e que quebra em mil pedaços todos os sistemas, todas as teorias.
Onde, pois, aprenderam os nossos sábios que o homem tem necessidade de não sei que vontade normal e virtuosa? Por que imaginaram eles que o homem tem aspirações após uma certa von­tade racional e útil? O homem não aspira senão depois de uma vontade independente, qualquer que seja o preço e sejam quais forem os resultados. Mas só o diabo sabe o que essa vontade vale…
VIII
“Ah! ah! ah! mas a vontade, isso é coisa que não existe!” ‑vós me interrompeis rindo. ‑ “A ciência já conseguiu tão bem dissecar o homem que, a partir de agora, sabemos que a vontade e o que se chama de livre arbítrio não passam de…”
Permiti, senhores! Eu próprio me preparava para começar assim. Tive mesmo medo, confesso‑vos: ia gritar que a vontade depende, sabe o diabo de quê, e que talvez se trate de algo muito bom, mas lembrei‑me da ciência e mordi a língua: foi então que me interrompestes. Com efeito, se se conseguir descobrir a fórmula de todos os nossos desejos, de todos os nossos caprichos, isto é, de onde provêm, de acordo com que leis se desenvolvem, como se reproduzem, para que fins tendem em tais ou tais casos, etc., é provável, então, que o homem deixe logo de querer, nem sequer é provável, é certo. Que prazer haverá em não querer senão em conformidade com tábuas de cálculos? Mas isto é dizer pouco ainda: o homem cairá imediatamente na categoria de uma simples peça. Na verdade que é um homem despojado de desejo, de vontade, senão uma peça, uma transmissão?! Que pensais disto? Examinemos pois as probabilidades: tal ou tal coisa poderá se produzir ou não?
‑ Hum! ‑ dizeis. ‑ Nossos desejos se enganam muito fre­qüentemente, porque nos enganamos na avaliação dos nossos interesses. Acontece‑nos querermos coisas ineptas porque, com a ajuda da nossa estupidez, cremos nos aproximarmos assim do que consi­deramos como particularmente interessante. Mas quando tudo esti­ver explicado, quando tudo for posto em ordem e fixado de antemão (o que é muito possível, pois é ridículo, pois é estúpido crer que certas leis da natureza permanecerão indecifráveis), então, evidente­mente, não haverá mais lugar para o que se chama de desejos. Se nossa vontade entra então em conflito com a, nossa razão, pode­remos raciocinar e não querer, porque é impossível a um ser ra­cional desejar inépcias, contradizer conscientemente a razão e pro­curar prejudicar‑se… E urna vez que todos os desejos e todos os raciocínios poderão ser calculados antecipadamente, porque estarão descobertas as leis do nosso suposto livre arbítrio, tornar‑se-á pos­sível, um dia, (eu não gracejo) organizar uma espécie de lista, e ter vontade, reportando‑nos a ela. Admitamos que me seja pro­vado um dia que se eu mostrei o punho fechado a alguém, é que não podia agir de outra forma, e que devia fechar o punho precisamente assim; de que liberdade disponho eu ainda, sobretudo se sou eu próprio instruído e se possuo um diploma? Posso então calcular minha existência com trinta anos de antecedência. Numa palavra, se isto se realizar, não teremos mais nada a fazer senão compreender. E, em geral, devemos repetir‑nos sem descanso que nesse instante e precisamente nessa circunstância, a natureza não se preocupa conosco de maneira nenhuma, e que é preciso aceitá‑la como é, e não como a enfeita a nossa fantasia, e que se aspiramos realmente às fórmulas, às efemérides, aos alambiques, não há nada a fazer, é preciso aceitar o alambique; senão ele passará perfeita­mente sem a nossa aprovação,
Sim, mas é aqui justamente que me aparece a dificuldade. Mas, perdoai‑me por me ter posto assim a filosofar. Não o esqueçais: tenho quarenta anos de subsolo. Permiti‑me soltar as rédeas à minha fantasia. Vede, senhores, a razão é uma coisa excelente; isto é incontestável; mas a razão é a razão e não satisfaz senão a faculdade de raciocínio do homem, enquanto que o desejo é a expressão da totalidade da vida, isto é, da vida humana inteira, inclusive a razão e seus escrúpulos; e, se bem que nossa vida, tal como se exprime assim, se revista freqüentemente de um aspecto muito velhaco, nem por isso é menos vida, e não a extração da raiz quadrada.
Assim comigo, por exemplo: eu quero viver, naturalmente, a fim de satisfazer minha faculdade de existência em sua totalidade e não para satisfazer unicamente a minha faculdade de raciocínio, que não representa, em suma, senão a vigésima parte das forças que estão em mim. Que sabe a razão? A razão não sabe senão o que aprendeu (ela não saberá nunca outra coisa, provavelmente; e embora isso não seja uma consolação, não o devemos dissimular), enquanto que a natureza humana age com todo o seu peso, por assim dizer, com tudo que ela contém em si, consciente e incons­cientemente; acontece‑lhe cometer disparates, mas vive.
Suspeito, senhores, que me considerais com um certo desdém: vós me repetis que é impossível a um homem esclarecido e culto, ao homem do futuro, em uma palavra, que lhe é impossível querer deliberadamente o que for contrário aos seus interesses; é claro como as matemáticas. Estou inteiramente de acordo: sim, é matematicamente exato. Mas repito‑vos pela centésima vez: existe um caso, um único, em que o homem pode deliberadamente, expressa­mente, rebuscar o que lhe é desfavorável, o que lhe parece estúpido, inepto, com o único fim de se subtrair à obrigação de escolher o aproveitável, o digno. Porque essa inépcia, esse capricho, talvez seja, efetivamente, meus senhores, o que há de mais vantajoso para nós sobre a terra, sobretudo em certos casos. É possível mesmo que essa vantagem seja superior a todas as outras, mesmo quando nos é manifestamente prejudicial e contradiz as conclusões mais justas do nosso raciocínio. Conserva‑nos, com efeito, o principal, o que nos é mais caro, isto é, nossa personalidade. Alguns afir­mam. que isso é precisamente o que temos de mais precioso. A vontade pode querer por vezes se pôr de acordo com a razão, so­bretudo se não se abusa desse acordo e se dele se aproveita mo­deradamente. Isto pode ser útil e digno de aprovação. Mas, muito freqüentemente, o mais freqüente mesmo, é a vontade recusar­‑se obstinadamente a concordar com a razão, e então… então… Mas sabeis que isto também é extremamente útil e digno de apro­vação?
Admitamos, senhores, que o homem não é um bruto. Não se dizer, com efeito, que ele o seja, porque se o fosse, quem poderia então reivindicar a inteligência? Mas se não é um bruto, é no mínimo monstruosamente ingrato, extraordinariamente ingra­to. Creio mesmo que é a melhor definição que se possa dar do homem: um ser com dois pés e ingrato. Mas não é tudo ainda: esse não é ainda o seu principal defeito. Seu principal defeito é o mau caráter, que ele conservou inalterável, desde o dilúvio uni­versal até o período schleswig‑holsteiniano de nossa História. Mau caráter, e, em conseqüência, conduta insensata, porque se sabe há muito tempo, que esta decorre daquele. Tentai, lançai um olhar pela História da Humanidade! Que vedes? É grandioso, dizeis? ‑ Sim, bem pode ser; só o colosso de Rodes já representa alguma coisa. E não é em vão que M. Anajevski nos lembra que, segundo uns, o colosso era uma obra humana, ao passo que outros afirmavam que era o produto das forças naturais. Estareis choca­dos pela variedade? Sim, há nisso uma certa variedade: para disso nos convencermos, basta lançarmos uma olhadela pelos grandes uniformes civis e militares, e se lhes ajuntarmos as pequenas far­das, perder‑nos‑emos completamente; nenhum historiador resistirá a isso. Monótono, direis? ‑ É possível. Não se faz senão guer­rear, com efeito. Luta‑se hoje, lutou‑se ontem, lutar‑se-á amanhã mesmo um pouco monótono demais, confessai!
Numa palavra, pode‑se dizer tudo da História Universal, tudo que se apresentar à imaginação mais desregrada. Mas é impossível dizer que ela é racional; equivocar‑vos‑eis desde a primeira sílaba. E, ademais, eis ainda o que se passa constantemente: homens apa­recem, sensatos e de bons costumes, filantropos, cujo fim é levar uma existência racional e honesta, a fim de agirem pelo exemplo sobre seus semelhantes e de provar‑lhes que é possível viver sabiamente. Mas que acontece, então? Sabe‑se que grande número desses amantes da sabedoria acabam, mais cedo ou mais tarde, por trair suas idéias e se comprometem em escandalosas histórias.
Pois bem! Eu vos pergunto: o que se pode então esperar do homem, desse ser dotado de qualidades tão estranhas? Tentai derramar sobre ele todos os bens da terra; mergulhai‑o na felici­dade, tão profundamente, que não se distingam mais na superfície senão algumas bolhas de ar: satisfazei suas necessidades econômicas tão completamente que ele não tenha mais nada a fazer senão dormir, comer pães de mel, e pensar nos meios de fazer durar a His­tória Universal ‑ pois bem! mesmo nesse caso o homem, por pura ingratidão, por necessidade de se emporcalhar, cometerá, à guisa de agradecimento, uma vilania qualquer. Correrá até o risco de perder os seus pães de mel e procurará as inépcias mais perigo­sas, os absurdos menos proveitosos, só para misturar a essa sabe­doria tão positiva um elemento fantástico, pernicioso. São precisa­mente os seus sonhos mais fantásticos, é a sua asnice mais vulgar, que ele pretenderá conservar, unicamente para provar a si mesmo (como se isso fosse verdadeiramente tão necessário) que os homens são homens e não teclas de piano, sobre as quais se dignam tocar, é verdade, as leis da natureza, que tocam de resto com tal brio que muito em breve não será possível querer seja o que for sem se referir aos calendários. E depois, mesmo que se achasse que o homem não passa realmente de uma tecla de piano, se se chegasse a lho demonstrar matematicamente, mesmo nesse caso, ele não toma­ria juízo e cometeria alguma incongruência, apenas para marcar bem sua ingratidão e perseverar no seu capricho. E, no caso em que os outros meios lhe faltassem, ele se afundaria na destruição, no caos; desencadearia não sei que males, mas não faria finalmente senão o que lhe desse na cabeça. Lançará sua maldição sobre o mundo, e como só ao homem é dado amaldiçoar (isto é bem um privilégio seu, que o distingue muito particularmente dos outros rimais) alcançará assim os seus fins, isto é, convencer‑se de que um homem e não uma peça.
Se me disserdes que o caos, as trevas, as maldições, que tudo isso pode também ser calculado de antemão, se bem que a só possibilidade desse cálculo irá paralisar o impulso do homem e que a razão triunfará, assim, uma vez mais, então eu vos confessarei que o homem só terá um meio de fazer o que lhe apraz, que é perder a razão e tornar‑se completamente louco.
Isto é óbvio para mim; eu vo‑lo garanto, pois parece claro que desde todos os tempos a grande preocupação do homem foi pro­vir sem cessar a si mesmo, que ele era um homem e não uma engrenagem. Com isso arriscava a pele, mas provava‑o: vivia como um troglodita, mas provava‑o. E como, depois de tudo isto, não pecar, como não nos felicitarmos por não estarmos ainda nessa situação e por a nossa vontade depender ainda não se sabe de quê?
Vós exclamais (se me fazeis ainda a honra de gritar) que nin­guém pensa em me privar de minha vontade, que a gente só se agita para arrumar as coisas de tal maneira, que por si mesma, por sua própria iniciativa, minha vontade possa pôr‑se de acordo COM os meus interesses normais, com as leis naturais, com a arit­mética.
Ora vamos, senhores! Que restará da minha vontade, quando tudo estiver nas tábuas de calcular e quando não houver mais que “duas vezes dois quatro”? Duas vezes dois serão quatro sem que minha vontade se incomode com isso. A vontade quer saber de coisa bem diferente!
IX
Senhores, gracejo evidentemente e eu próprio sei que meus gracejos não são muito bons; mas, aliás, não se trata unicamente de gracejos. É rangendo os dentes, talvez, que gracejo. Senhores, há problemas que me atormentam: ajudai‑me a resolvê‑los. Assim, quereis libertar o homem de seus antigos hábitos e corrigir‑lhe a vontade segundo os dados da ciência e conforme ao senso comum. Mas como sabeis que o homem pode e deve ser corrigido? De onde concluístes que a vontade do homem deve necessariamente ser educada? Em uma palavra: por que pensais que essa educação lhe é realmente útil? E para dizer tudo: por que estais tão firme­mente persuadidos que é sempre vantajoso para o homem não contradizer seus interesses normais, reais, garantidos pelo raciocínio e pela aritmética? Isto não é, em suma, senão uma suposição vossa. Admitamos mesmo que tal seja com efeito a lei lógica; mas será verdadeiramente a lei humana? Pensais, talvez, que sou louco, senhores? Permiti‑me que me explique.
Admito: o homem é um animal essencialmente construtor, obri­gado a se dirigir conscientemente para um fim qualquer; é um engenheiro. Deve, pois, constantemente traçar caminhos novos, não importa em que direções. Mas é talvez por causa disso, preci­samente que tem por vezes desejo de escapar pela tangente, pre­cisamente porque está condenado a traçar um caminho e também porque, por estúpido que seja o homem de ação, ele adivinha por vezes que toda estrada leva sempre a alguma parte, e que não é a sua direção que importa, mas o próprio fato de que ela o conduz para um lugar qualquer, a fim de que o menino sabido não se lembre de desprezar seu ofício de engenheiro e não se abandone à preguiça, a qual é, como se sabe, a mãe de todos os vícios. É indiscutível que o homem gosta muito de construir e traçar cami­nhos; mas como acontece então que ele ame tão apaixonadamente a destruição e o caos? Dizei‑me. Mas eu mesmo gostaria de vos dizer algumas palavras a esse respeito.
Não será que ama tanto a destruição e o caos (Se os ama às vezes, é indiscutível) porque tem instintivamente medo de atingir o fim e terminar o edifício que constrói? O que sabeis disso? Ele não ama talvez esse edifício, senão de longe, e não de perto. Apraz‑lhe, talvez, construi‑lo, mas não morar nele, e está pronto talvez a abandoná‑lo aos animais domésticos. às formigas, aos car­neiros, etc. As formigas, sim, têm outros gostos; possuem nesse gênero um edifício verdadeiramente extraordinário, construído para os séculos, o formigueiro.
Foi por um formigueiro que começaram as honradas formigas e é provável que tal seja também o termo da sua carreira, o que faz honra à sua constância e ao seu senso prático. Mas o homem é um ser versátil, e é possível que, à semelhança do jogador de xadrez, não ame senão a ação mesma e não o fim a atingir. E quem sabe? (não se pode garantir) é possível que o único fim para o qual tende a Humanidade não consista senão nesse esforço, nessa ação; ou por outra: a vida não teria fim exterior, o qual não pode evidentemente ser senão aquele “duas vezes dois quatro”, isto é, uma fórmula. Ora, senhores, duas vezes dois quatro é um princípio de morte e não um princípio de vida. Em todo o caso, o homem sempre teve medo desse “duas vezes dois quatro” e eu também tenho.
É verdade que o homem não se ocupa senão da procura desses “duas vezes dois quatro”; atravessa oceanos, arrisca a vida em sua perseguição; mas quanto a encontrá‑los, quanto a apanhá‑los real­mente ‑ juro‑vos que tem medo, pois ele se dá conta que, uma vez encontrados, nada mais tem a fazer. Depois de terminarem o trabalho e de terem recebido, os operários vão ao botequim, para acabarem a noite na cadeia; têm então a sua conta ao menos por uma semana. Enquanto que o homem, que se tomará ele? Em todo o caso, observa‑se constantemente nele certo constrangimento, sempre que atinge um fim. Tenta aproximar‑se do fim, mas tão logo o atinge, não está mais satisfeito; e isto é verdadeiramente bem cômico. Em uma palavra: o homem é construído de uma maneira muito cômica, e tudo isto faz o efeito de um calemburgo. Mas seja como for, “duas vezes dois quatro” é uma coisa bem insu­portável. “Duas vezes dois quatro”, na minha opinião, respira impudência. “Duas vezes dois quatro” nos desfigura insolentemen­te. De mãos nos quadris, ele se nos atravessa no caminho e nos cospe na cara. Admito que “duas vezes dois quatro” seja uma coisa excelente, mas se é preciso louvar tudo, eu vos direi que “duas vezes dois cinco” é também às vezes uma coisinha muito encantadora.
E por que pois estais tão inabalavelmente, tão solenemente convictos de que só é necessário o normal, o positivo, o bem‑estar, em uma palavra? A razão não se engana em seus juízos? E possível que o homem não ame senão o bem‑estar. Não é possível que ele ame na mesma medida o sofrimento? Não é possível que o sofrimento lhe seja tão vantajoso quanto o bem‑estar? O homem se põe por vezes a amar apaixonadamente o sofrimento; isso é um fato. Não há necessidade de consultar a esse propósito a História Universal. Indagai vós mesmos se unicamente sois ho­mens, e se tendes vivido, por pouco que seja. No que toca à minha opinião pessoal, dir‑vos‑ei que é mesmo inconveniente só amar o bem‑estar. Está bem? Está mal? Isso eu não sei, mas às vezes é agradável quebrar alguma coisa. Não é precisamente o sofrimento que defendo aqui, ou o bem‑estar: é meu capricho, e insisto para que ele me seja garantido, se for preciso. Nas comédias, por exemplo, não se admitem os sofrimentos, eu sei; tampouco podemos admiti‑los num palácio de cristal: há dúvida, há negação no so­frimento, mas o que seria então de um palácio de cristal do qual se pudesse duvidar? Ora, estou certo de que o homem não re­nunciará jamais ao verdadeiro sofrimento, isto é, à destruição e ao caos.
O sofrimento! Mas é a causa única da consciência! Eu vos declarei, é verdade, no início, que a consciência, na minha opinião, é um dos maiores males do homem; mas sei que o homem a ama e não a trocará por nenhuma ‑satisfação, seja qual for. A consciência, por exemplo, é infinitamente superior a “duas vezes dois quatro”. Depois de “duas vezes dois”, não resta evidentemente mais nada, não somente a fazer, mas mesmo a conhecer. A única coisa que nos resta, então, é tapar nossos cinco sentidos e mergu­lharmos na contemplação. Com a consciência chega‑se, é verdade, a um resultado idêntico, isto é, à inação, mas poder‑se‑á, então, pelo menos dar‑lhe uma chicotada, de vez em quando, o que vi­vifica um pouco o espírito, apesar de tudo. É muito reacionário, mas sempre vale mais do que nada.
X
Credes no palácio de cristal, indestrutível, para a eternidade, ao qual não se poderá mostrar a língua, nem mostrar os punhos às escondidas. Pois bem! eu, se desconfio do palácio de cristal, é talvez justamente porque é de cristal e indestrutível e porque não se poderá lhe mostrar a língua, mesmo às escondidas.
Vede: se em lugar de um palácio de cristal eu só disponho de um galinheiro, quando chove, eu me insinuarei talvez no ga­linheiro, para fugir à chuva, mas ficando‑lhe embora muito agrade­cido por ter me preservado, não tomarei meu galinheiro por um pa­lácio. Rides, dizeis‑me que em semelhante caso palácio e galinheiro se eqüivalem. Sim, responderei, se se vivesse apenas para não estar molhado.
Mas que fazer, se se me meteu na cabeça que não se vive somente para isso e que, se se vive, é num palácio que é preciso se instalar? Isto é minha vontade, isto é meu desejo, Vós não conseguireis me arrancar esta vontade, senão quando tiverdes mo­dificado meus desejos. Pois bem! modificai‑os, apresentai‑me um outro fim, oferecei‑me um outro ideal! Mas, enquanto espero, recuso‑me a tomar um galinheiro por um palácio de cristal. É possível que o palácio de cristal não seja senão um mito, que as leis da natureza não o admitam e que eu o tenha inventado por tolice, impelido por certos hábitos irracionais da nossa geração. Mas que me importa que ele seja inadmissível! Que me importa, pois que ele existe nos meus desejos, ou, para dizer melhor, pois que existe tanto quanto existem meus desejos? Continuais a rir, penso. Ride tanto quanto vos agrade! Aceitarei todas as zom­barias, mas recusar‑me‑ei a me declarar saciado, quando ainda tenho fome; não me contentarei com um compromisso, com um zero se renovando indefinidamente, pela única razão de que está confor­me as leis da natureza e existe realmente. Não admitirei que o coroamento dos meus desejos possa ser uma casa de tijolos, com alojamentos a preço módico, arrendados por mil anos e osten­tando a tabuleta do dentista Wagenheim. Destruí meus desejos, derrubai meu ideal, apresentai‑me um fim melhor e eu vos seguirei. Dir‑me‑eis, talvez, que não vale a pena ocupardes‑vos de mim; mas neste caso posso vos responder do mesmo modo. Nós discuti­mos seriamente, e se não vos dignardes me conceder vossa atenção, pois bem! não vou chorar por isso. Eu tenho meu subsolo.
Mas, enquanto existo, enquanto desejo, que minhas mãos se. quem se levo um tijolinho que seja a essa casa! Não me digais que eu mesmo renunciei cedo ao palácio de cristal, pelo único mo­tivo de não lhe poder mostrar a língua. Se falei assim, não é que eu goste tanto de mostrar a língua. Acontece porém que, e é isto precisamente que me irrita, de todos os vossos edifícios não há um ao qual não se possa mostrar a língua. Ao contrário, eu faria cortar minha língua, por gratidão, se se arranjassem as coisas de tal maneira que eu não tivesse mais desejo de a mostrar. Que me importa que as coisas não possam se arranjar assim e que seja preciso contentarmo‑nos com alojamentos a preços módicos! Por que te­nho eu tais desejos? Não sou feito assim, senão para poder ve­rificar que essa constituição não é senão uma brincadeira de mau gosto? É esse verdadeiramente o único fim? ‑ Não o admito.
De resto, sabeis o que vou dizer‑vos? estou persuadido de que nós outros, homens do subsolo, devemos ser mantidos na trela. O homem do subsolo é capaz de permanecer silencioso no seu subsolo durante quarenta anos; mas, se sai do seu buraco, ele de­sabafa, e então fala, fala, fala…
XI
O fim dos fins, senhores, é não fazer nada, absolutamente nada. A inércia contemplativa é preferível seja ao que for. Assim pois, viva o subsolo! Se bem, que eu tenha dito antes que inve­java o homem normal até a derradeira gota da minha bílis, quando o vejo tal qual é, renuncio ao ser normal (não cessando todavia de ter inveja dele). Não! não! apesar de tudo o subsolo vale mais. Lá ao menos se pode… Ah! cá que minto de novo! Minto, porque sei, tão claramente quanto duas vezes dois são quatro, que não é o subsolo que vale mais, mas algo muito dife­rente a que aspiro, mas que não posso descobrir. Para o diabo o subsolo!
Se eu pudesse crer ao menos numa só palavra do que escrevo aqui! juro‑vos, senhores, que não creio em uma só palavra, em uma única e miserável palavrinha! Ou melhor dizendo: creio, talvez, mas sinto no mesmo momento, suspeito, não sei por quê, que minto descaradamente.
‑ Mas, nesse caso, por que escreveu tudo isto? ‑ pergun­tareis certamente.
Que teríeis dito se eu vos tivesse encerrado durante quarenta anos, sem fazer nada, e se, decorrido esse tempo, eu fosse visi­tar‑vos no vosso subsolo para verificar no que vos tínheis tornado?
Bem que eu gostaria de vos ver lá! Pode‑se deixar durante quarenta anos um homem só e sem ocupação?
“Mas não é vergonhoso, não é humilhante!” ‑ me direis talvez, meneando a cabeça, com desprezo, ‑ “Você tem sede de vida, mas quer resolver as questões vitais por meio de mal­‑entendidos lógicos. E que obstinação! Que impudência com isso!
Mas tem medo, apesar de tudo. Você diz inépcias, mas sente‑se feliz com elas. Diz insolências, mas tem medo e se desculpa. Declara que não receia ninguém, mas busca as nossas boas graças. Você nos assegura que range os dentes, mas graceja ao mesmo tem­po, para nos fazer rir. Sabe que as suas sentenças não valem nada, mas parece muito satisfeito com a sua literatura. É possível que você tenha sofrido, mas não tem nenhum respeito pelo. seu sofri­mento. Há certa verdade em suas palavras, mas falta‑lhes pudor. Sob a ação da vaidade mais mesquinha, você traz a sua verdade t para a praça pública, expõe‑na no mercado, para alvo de chacota. Você tem alguma coisa a dizer, mas o temor faz‑lhe escamotear a última palavra, pois é insolente, mas não audaz. Gaba a sua consciência, mas não é capaz senão de hesitação, porque embora sua inteligência trabalhe, seu coração está emporcalhado pela libertinagem; ora, se o coração não é puro, a consciência não pode ser clarividente, nem completa. E como você é importuno, como é molesto! Que palhaçada, a sua! Mentira tudo isso! Mentira! Mentira!”
Todas estas palavras, fui eu quem mas “, evidentemente. Elas também provêm do subsolo. Durante quarenta anos, prestei atenção por uma pequena fenda a esses discursos. Eu próprio os compus, pois não tinha outra coisa a fazer. Por isso foi‑me fácil decorá‑los e imprimir‑lhes; uma forma literária.
Mas, pudestes crer, verdadeiramente, que eu ia imprimir tudo isto e vo‑lo dar para ler? E eis ainda o que não compreendo: por que me dirijo a vós, chamando‑vos de “senhores”, como se fósseis leitores meus? Não se publicam, não se dão a ler a nin­guém as confidências que eu me preparo para fazer aqui. EU, em todo o caso, não sou suficientemente forte para agir assim, e, de resto, não vejo a necessidade disso. Mas, vede, veio‑me alma fantasia, e quero realizá‑la custe o que custar. Eis do que se trata:
Entre as lembranças que cada um de nós possui, há algumas que não contamos senão aos nonos amigos. Há outras ainda que não confessaremos nem mesmo aos nossos amigos, que não repe­tiremos senão a nós mesmos, e aliás, sob o signo do segredo. Mas existem enfim coisas que o homem não consente nem em confessar a si mesmo. No curso de sua existência, todo homem honesto acumulou dessas lembranças suficientemente. Direi mesmo que seu número é tanto mais importante, quanto o homem é mais honesto. Eu, em toda o caso, não faz muito tempo que me decidi a me lem­brar de certas antigas aventuras minhas; até aqui, evitei‑as, e não sem um tanto de inquietação. Ora, agora, quando as evoco e quero mesmo anotá‑las, agora tenho a prova: é possível ser franco e sincero, ao menos cara a cara consigo mesmo, e poder‑se‑á dizer toda a verdade? Observarei a este propósito que Heine assegura que não podem existir autobiografias exatas, e que o homem mente sempre, quando fala de si mesmo.. Rousseau, com seu ponto de vista, certamente nos enganou nas sua Confissões e mesmo delibe­radamente, por vaidade. Estou certo de que Heine tem razão: compreendo muito bem que nos possamos sobrecarregar de crimes abomináveis, apenas por vaidade, e compreendo também o que pode ser esse sentimento. Mas Heine tinha em vista as confissões pú­blicas; ora, eu não escrevo senão para mim sozinho e declaro de lima Vez por todas que, se pareço dirigir‑me ao leitor, é simples­mente iam processo de que me sirvo para maior facilidade. Não é senão uma forma, uma forma vazia; e quanto aos leitores, não. os terei jamais. já o declarei.
Não quero ser incomodado em nada na redação das minhas notas. Não observarei nenhuma ordem, nenhum sistema. Escre­verei simplesmente o que me lembrar.
Mas vós poderíeis me pegar na palavra desde o começo e me perguntar: se é verdade que não pensa em seus leitores, por que então combina consigo mesmo ‑ e no papel ‑ ainda! ‑ que não observará nenhuma ordem, nenhum sistema, que registrará o que lhe passar pela cabeça, etc.? Por que se explica? Por que essas desculpas ?
Pois bem! eis aí! é assim!
Há, de resto, aí, um caso psicológico interessante. É possível que eu seja muito simplesmente um covarde. Mas é possível também que imagine diante de mim um público, a fim de não perder o sentido das ‑conveniências. É possível ter milhares desses motivos…
Mas há ainda outra coisa: por que, em suma, pus‑me a escre­ver?’ Se não é para o público, não posso evocar minhas lem­branças sem as lançar ao papel?
Com efeito, mas quando estiverem fixadas no papel, adqui­rirão um aspecto mais solene. Isto me constrangerá, julgar‑me‑ei melhor e meu estilo ganhará. Demais, é possível que isto me traga certo consolo. Assim, hoje, estou particularmente oprimi­do por uma lembrança longínqua; surgiu em mim muito nitida­mente há alguns dias, e, desde então, me persegue sem tréguas, como um desses motivos musicais que não pretendem vos largar. Ora, é preciso absolutamente que eu me desembarace dela. Tenho centenas de recordações desse gênero; mas uma delas às vezes des­perta de súbito e me agarra pela garganta. Eu imagino, não sei mesmo por quê, que se a registrar, ficarei livre. Por que não tentaria?
E depois, enfim, eu me aborreço e nunca faço nada. Escrever as lembranças é um trabalho. Diz‑se que o trabalho torna o ho­mem bom e honesto. É então uma oportunidade que se me ofe­rece…
Fiódor Dostoiévski
Extraído do livro “Os Mais Brilhantes Contos de Dostoiévski”, 1970

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MILHO DE PIPOCA – Rubem Alves





Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho para sempre.
Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo, fica do mesmo jeito a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e uma dureza assombrosa. Só que elas não percebem e acham que seu jeito de ser é o melhor jeito de ser. Mas, de repente, vem o fogo.
O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos: a dor.
Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, o pai, a mãe, perder o emprego ou ficar pobre.
Pode ser fogo de dentro: pânico, medo, ansiedade, depressão ou sofrimento, cujas causas ignoramos.
Há sempre o recurso do remédio: apagar o fogo! Sem fogo o sofrimento diminui. Com isso, a possibilidade da grande transformação também. Imagino que a pobre pipoca fechada dentro da panela, lá dentro cada vez mais quente, pensa que sua hora chegou: vai morrer. Dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar um destino diferente para si.
Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada para ela. A Pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo a grande transformação acontece: BUM! E ela aparece como uma outra coisa completamente diferente, algo que ela mesma nunca havia sonhado.
Bom, mas ainda temos o piruá, que é o milho de Pipoca que se recusa a estourar. São como aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem. A presunção e o medo são a dura casca do milho que não estoura. No entanto, o destino delas é triste, já que ficarão duras a vida Inteira. Não vão se transformar na flor branca, macia e nutritiva. Não vão dar alegria para ninguém.
Do livro: “O amor que acende a lua”, de Rubem Alves

“Quando a gente acha que tem todas as respostas, vem a vida e muda as perguntas…”