Poemas de todos os cantos - amigos e ídolos

Luciane Lopes
O AR DA TUA GRAÇA*
Uma palavra no colo,
um ombro no papel.
Um céu derramando
remédio.


Um tédio na vidraça,
que logo passa com o
ar da tua graça.

Um não querer que deseja.
Um verso que boceja teu sono,
de poeta.

O que alivia, é pensante.
O que desarruma, é pulsante.

Fazer o quê?
Se a palavra pula da boca
e ainda sonolenta, rouca e
insensata alimenta-se do
ar, da tua graça..

by Luciane Lopes*



Virgílio Siqueira

Desvão

Invento silêncios

E quero ser ouvido

Ando mesmo a esmo

Nunca por estar perdido




Sinto esquisitas saudades

De amores que eu nunca tive

Do não acontecido

Nunca vivido




Do que nunca me viera

De algo que nunca existira

E nem por mim fora concebido



Do que nunca me chegara

Nem de mim nunca partira



Não sinto medo

Da aventura de partir

Nem temo não ter pra onde ir



Temo é não ter pra onde

Nem porque voltar

Pra novamente me reinventar

E novamente me reconstruir



Nada ser nem nunca ter sido

De tudo me esquecer

Ser esquecido



Fugir, e na fuga me perder

Por desencantos, deixar de viver

Ou sentir-me frio no que seria aquecido



Nada sentir

Nada ter a perder

Por nada nunca ter tido


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Acredito em anjos

Sim, eu acredito em anjos
Não naqueles que voam
Envoltos em nuvens
Alheios à vida e aos anseios do mundo

Acredito em anjos que têm pés ariscos
Que avançam
E olhos incisivos e despertos
Que enxergam do mínimo ao imenso
Que discernem ínfimas partículas na escuridão

Que têm mãos afeitas ao afago
E à definição da escolha e da colheita

Acredito em anjos que luzem
E arrebentam estruturas sombrias

Que se pronunciam em gestos
Sem mover os lábios
Com braços que nunca se afastam
Mesmo quando distantes

Que sorriem quando o parceiro vence
Que sofrem e lamentam derrotas
Sem deixarem-se vencidos

Acredito em anjos que acolhem miragens
E as acalentam com olhos ternos
E atitudes de fogo

Acredito em anjos que semeiam luz
E somem, deixando rastros
Imersos no lume


Virgílio Siqueira




Meus inexistentes mundos

Sorvi sois
Comi espinhos

Em chão rochoso finquei estacas

Sem chibancas, arranquei toco com as unhas

Semeei ventos
E nem tempestades colhi

Andei por caminhos que os meus próprios pés tracejaram
Na direção do nada, pra lugar nenhum
Sem a nada me ater

Sem nunca me encontrar nem nunca me perder

Contemplei luas, mirei estrelas
E todas eram minhas; por não serem de ninguém

Por divagante, perdi alguns cometas
E reacendi-me em lumes de astros cadentes

Desenhei, com indefinidos traços, indefiníveis criaturas

Minhas figuras mais concretas
Foram as que esculpi em nuvens
Concepções voláteis que se dispersaram em segundos

Meus mais claros mundos
São os que ainda hoje inexistem
(Mas que nunca somem de dentro de mim)

Não me atraí por nada que se possa ostentar
Nem tenho conquista da qual possa me gabar

E mesmo assim, ainda acho que valeu a pena

Ouvi cantar os passarinhos do sertão
E tomei banho de chuva

Virgílio Siqueira





Escaladas - Davi Siqueira & Laércio Lima



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 Araujo Marco 




De descendência ibérica, nasceu e criou-se à margem de muitas águas, o Oceano Atlântico, a Lagoa dos Patos, o Saco da Mangueira, a natureza exuberante e a simplicidade de seus pescadores, isto, em contraste à poesia densa das noites e das ruas do porto de Rio Grande, sua cidade natal. Pesquisador incansável, Marco é um dos responsáveis pela recuperação e divulgação da cultura afro-açoriana em seu país aqui documentado em canções como MAR DE DENTRO, ARAMBARÉ e OLARAI DO BENEDITO. Com uma linguagem clara e um lirismo mais do que peculiar, o compositor, cantor, poeta e instrumentista MARCO ARAUJO encerra, neste trabalho, sua vitoriosa trajetória nos festivais de música do sul do Brasil, uma mostra significativa do que viveu, aprendeu e desenvolveu durante a constante busca de uma expressão sonora universal.



Quebranto de Poeta Triste

Mirava o tempo através da alma
Que embaçada pelo pranto
Era recanto da lembrança infinda
Quebranto de poeta triste

Mirava a rua pela porta fria
Que escancarada se debatia
Nos braços da tempestade
Que sufocava noite e poesia

E assim brotavam as palavras
Livres de qualquer corrente
Presentes, vivas e dementes

E assim brotavam rimas
Reticentes, duras, complacentes
Bêbadas, dissonantes, dissidentes
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 Pandorga, parceria Marco Araujo com Chico Mattos, que fará parte do seu DVD

 "Vivendo mais em nós"




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Estrelas Caídas 
Marco Araujo / Luciane Lopes 

Deitei meus olhos 
sem me esconder 
Na cor tamanha 
de amanhecer

Fechei-me em portas
sem perceber
A dor estranha de
anoitecer

Zombei das luzes
frias de paz
Ruas sem rostos
Na tarde lilás

Troquei-me em rondas
sem me notar
Contando as horas de me
Lembrar

Que o amor rebanha
Estrelas caídas
Das noites zonzas
perdidas sem par

Que perdem-se prontas
nos olhos meus
azuis... tantas contas
dos mares teus

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Casa amarela; janelas vermelhas

Sempre que lembro a infância me deparo com lugares misteriosos e histórias sobrenaturais. Encontro sonhos e desejos que nem importam mais; perderam-se no tempo e, sem querer ou prazer, provocam risos contidos no pensamento. Deram lugar a outros e a outros e a outros insondáveis caminhos no coração de quem procura a vida com paixão. Fazem parte de um destino que nos espreita sem perdas, por vezes com alegria ou tristeza, quase sempre com sapiência. Dolorosa, quase sempre. E foi assim, num desses dias de pandorga e bolita que percebi que nada é para sempre e sempre é expressão mais que poética, é infinito; trilho de trem. 
Sem pai nem norte, observava incrédulo o velho chalé amarelo com janelas vermelhas ser arrancado de suas fundações e, assim, colocado sobre um grande triângulo de ferro com rodas esquisitas, engatado a um antigo caminhão Ford que, com alguma dificuldade, o retirou do terreno que ocupara durante longos trinta anos. Era como uma árvore extirpada pelas raízes. Ali estavam minhas vivências, planos, amores, desamores, enfim; natais e mais natais. 

Não lembro se ria ou chorava, não entendia o porquê de tanta dor por uma velha casa que partia. Com ela, iam-se meus fantasmas, medos, limites e, logo, se ergueria uma nova casa com tijolos e peças maiores, janelas de guilhotina e persianas plásticas. O chão surrado de vermelho “xadrez” da antiga cozinha, trocado por lajotas cor de vinho, hexagonais e frias, muito frias. No banheiro, como sonhava minha mãe, azulejos cor-de-rosa. Não mais cortinas nas janelas, nem ligação entre os quartos, tampouco a farra de encerar o velho assoalho escorregando em panos de lã. Nem lugar para os trilhos de linóleo ou o colorido tapete de trapos. 

Com a casa foram-se meus amigos invisíveis; os gnomos e seus estalos, as fadas do bom sono e as bruxas com suas risadas. Universo sonoro e colorido de seres poderosos que, de certa forma, eram aparentados e parecidos com seu visionário.

Tinha 13 anos e muitos sonhos, ficava horas a fio pensando em branco. Evitava espelhos e secretamente traçava planos mirabolantes. Queria voar e não tinha asas, queria rir e perdia a graça. Tudo muito, tudo pouco. E ainda assim, a casa amarela de janelas vermelhas se ia pela rua afora. 


Marco Araujo