Rúbia Garcia de Paula

                                                       Tonelada - Rúbia de Paula

Passeia pela memória da infância
O Tonelada
Gordo
Redondo
Roliço
Brincando de bola com a meninada
Menino igual entre os iguais
Bom da memória
Bom de bola
Sem saber que o vício
De forma mordaz
Diabolicamente já lhe traçava um futuro
Adverso do da garotada.

Ronda pelas ruas da cidade
Assustando a molecada
O Tonelada
Em gramas
Descaído
Desenxabido
Reduzido a pó
Tonelada sem eira nem beira
Sem paradeiro
Carregando seu saco
Desbotado como ele só
Pesado como lhe fora o tronco
O saco, o fardo
A verdadeira tonelada

Tonelada sem toner
Sem cor
Sem memória
Desvairado
Louco de pedra
A pedra lançada no lombo do homem
Deixado ao desdém da sua condição humana.

Itauçu, 08 de setembro de 2011





RE VERSAR-SE 


Rúbia Garcia de Paula 

tenho olhos evidentes
é vidente meu mundo 
exposto
claro 
translúcido
manifesta a minha interrogação 
quem é você?
eu?
ele?
nós?
quem somos seres anversos 
no meu verso 
ou na sua voz 
de quem lê os estreitos do mundo 
pelas gretas da palavra vida 
evidências... 
é vida densa
todo pestanejar de páginas 
não escritas




CERRADO 

Rúbia Garcia de Paula 
Distorces a tua imagem:
ser forte,
ser áspero,
ser rude.
Mas, desnudo,
reservas no ventre
tanta água: teu júbilo!
Ressurgem das cinzas,
de tons garridos,
tuas flores - meninas dos
frutos maduros.
Vais...
destorces...
retorces...
contorces...
Baila a tua biodiversidade
dentro de ti!

PASSANDO A LIMPO 
Rúbia Garcia de Paula 

hoje me fiz rascunho
bem embolado 
atirado ao cesto

contenho toda a história
riscada
censurada
reinventada
num outro formato
sei dos valores
mas, eu mesma,
não tenho valor aos leitores

sou um rascunho
bem amassado
deixado de lado
substituído
por uma nova invenção

fui superada!

mas, “contrario sensu”,
soa-me prazerosa
tal ideia

sinto-me liberta,
mais leve que folha ao ar
em queda livre
nada me prende
nem criatura, nem criação

sou um descarte perfeito
onisciente
no meu absorto silêncio

psiu!






METAMORFOSE
Rúbia Garcia de Paula

Houve um momento em que
envelheci cem anos em dez dias


tenho rugas na memória

no meu silêncio, equilíbrio

e um sorriso de irresignação

A fragilidade das horas
fez-me forte
transcorro segura do sul
ao norte
onde haveria só explosão
Meu olhar, janela escancarada
mira o mundo velho – velho mundo
constata que vincos e tempo
não são absolutos
mas desatam grilhões



MULHER PEDINTE
Rúbia Garcia de Paula

Voz pueril, meio doce meio fraca, baixa:
“ô, de casa!”, “ô de casa!”
Só pelo timbre diria ser uma menina,
não fosse a imagem ao abrir a porta:
mulher alta, cabelos negros, longos,
mal tentados pentear.
No colo um menino.
Moreno-canela igual a mãe.
O pedido:
“senhora podia me arrumar
um poquim de comida,
a gente cheguemo agora”
“De onde?”
“da paraíba”
“Onde estão?”
“do lado do posto, na rodovia”
“Vocês moram ali perto?!”
“não. a gente cheguemo lá.”
Sotaque de lugar nenhum. Decerto perdido na poeira da vida sem beira.
O filho, agasalhado. A mãe, vestido longo, florido,
olhos grandes, redondos, de diva ou Madona esculpida no barro do Nazareno.
Mas o olhar não pestanejava, gritava: mulher gasta pelo tempo, sofrida.
O rosto ferido. Acidente? Descaso?
Violência doméstica de quem tem como casa
o teto de Deus?

Trouxe a comida.
Outro pedido:
“um pouquim de água pra mim dá pra ele porque dormiu com sede, tadim”
Trouxe a água.
Ela se sentou, sem pudor,
empunhando a criança nos braços,
no meio da calçada.
Pelas flores vermelhas do vestido cor-de-rosa foi arrodeada:
a mão nas têmporas do rebento acarinhava
ao mesmo tempo em que ele bebia o líquido, numa sede tranquila.
Aparência nutrida. Olhinhos vivos, fixos em mim.
Risonho. Um riso largo, angelical. A progenitora sorria junto. Felizes.
O momento encobria no meu cérebro o cheiro forte de mijo –
dormido e amanhecido e dormido, impregnado nas vestes de ambos.
A única informação codificada por essa massa cinzenta era de amor.
Amor daqueles enxutos, sem consumismos de grifes para bebês;
sem peitos fartos pingando leite ou sequer mamadeiras de lata em pó.
Não havia nada mais puro e límpido do que aquele amor
regado por um copo de água cristalina da fonte do Onipotente Criador.
Mais do que ela o nutria com o alimento físico,
ele a sustentava com os nutrientes do espírito.

Ajudei-os a levantar entregando-lha as outras sacolas de doações.
Agradeceu. Despediu-se.
Pensou ter ido embora. Mas ficou.
Pensou ter levado algo. Mas deixou.
Conquanto o bom José não estivesse presente,
aquela cena gravou em mim,
qual uma tela à óleo do presépio de Natal.
Vivo, latente, atual.
Compreendi, a um mês da “ceia natalina”,
a pior das misérias humanas:
a miséria que assola a alma assoberbada, vazia.
A miséria de que a nossa senhora pedinte não padecia .


Itauçu, 24 de novembro de 2011 – 00 h e 23 min





SERMÃO NA MONTANHA [de chantili]
Rúbia Garcia de Paula

Caríssimos,

Não levem o poema a sério...
Levem-no ao parque,
para tomar sorvete,
ou escalar uma montanha
de chantili.
Não o leia.
Apenas sinta o leve olor
das suas entranhas.
O sumo das palavras,
deixe deslizar
papilas gustativas afora,
feito fruta madura
nos lábios infantis.
Apalpe as texturas...
Ásperos ou macios,
provocar-lhes-ão lembranças,
sensações do ser
que se revela um dia.

Ao se depararem com o poema,
seja ele o sedento leitor
e vocês as doces rimas...
[em confete]


Imagem: "Confete"

 — em VII Festival Gastronômico de Pirenópolis.




ÁRVORE DE NATAL
Rúbia Garcia de Paula


Há um ninho aninhado
Na minha árvore de Natal
Dele ecoam muitos pios natalinos
Parece que a mão do Nazareno
Numa noite dessas
Realmente passou por lá
Eclodiu a redoma natural
Desceu goela a baixo
Pela chaminé dos bicos abertos
E nutriu-os da vida essencial

Minha árvore é musical
É cerrado vivo no coração do Brasil
Nela os frutos amadurecem
Redondos
Suculentos
Para a ceia dos pássaros
Num madrigal
Para a mesa dos homens
Sob um céu de anil

No calendário da minha árvore
Melindrosamente elaborado
Pela Mãe Natureza
Por decreto do Criador
Não há momento que não seja
O próprio dia de Natal
 — em Chácara Nossa Senhora de Nazaré.